sábado, 31 de dezembro de 2011

Em tempos de sustentabilidade, como fica Iemanjá?

Dicas para você cumprir exigências sociais e espirituais simultaneamente

Quem nunca ouviu falar em Iemanjá, rainha do mar? Até os não religiosos, ou os de religiões distintas, sabem que é tradição em alguns lugares do Brasil colocar oferendas para ela nos dias anteriores ao Ano Novo. Até aí tudo bem. A questão é que em tempos em que as palavras de ordem são sustentabilidade e preservação do meio ambiente, bate uma dúvida: como jogar barquinhso com velas, pentes, flores e perfumes para a musa marítima?

Pensando nos eco-chatos de plantão e em sua patrulha ideológica, o Onde Está o Óleo? resolveu mostrar que é educado e, embora não levante bandeirolas nem distribua ecobags natalinas, corrobora com a boa educação e higiene.

Para começar, ela, a famosa e tão falada ecobag pode servir para você transportar os presentinhos de Janaína. Quais presentinhos? Em uma séria reunião numa mesa de bar, ficou decidido: o barquinho você pode fazer de massa crocante (aquelas que servem para fazer canapés) levá-lo ao forno e... tchanram! ele já pode ficar firme para transportar as oferendas. Se achar trabalhoso (não esqueça o que receberá em troca), você pode pegar uma abóbora ou uma melancia e entalhá-la em formato de barco.

Quanto ao recheio da nossa embarcação, podemos fazer algumas substituições. No lugar do vidrinho de perfume que levaria tempo para se decompor, você pode colocar a essência em um algodão, por exemplo. É mais fácil de decompor e Iemanjá não deixará de ficar perfumada! O famoso pente oferecido à ela pode ser feito de legumes entalhados. Serve de comida para os peixes e ela não fciará sem as madeixas penteadas.

As flores, que não demoram tanto para se decompor, também podem ser substituídas, caso você não queira atrapalhar o banho de mar dos amiguinhos que estão em sua merecida folga no dia primeiro de janeiro: pode também fazê-las entalhadas em legumes.

E assim segue seu Ano Novo ecológico e in (ô palavrinha ridícula). Você cumpre as exigências sociais (ninguém vai dizer que você é antiecológico) e as espirituais. Quer mais? Aí só no ano que vem.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

O cheiro do verão

“Árvores com o rosto arreiado de seus frutos ainda cheiravam a verão". Quando leu esses versos de Manoel de Barros pôde constatar aquilo que sempre mais lhe chamara a atenção no verão: o cheiro. Não sabia se era o entupimento de suas vias nasais durante as outras estações o causador de sua “miopia olfativa”, mas o fato é que tinha certeza que o verão possuía um odor avassalador. “Quando respiro, já sinto algo positivo. Uma onda, uma alegria, uma leveza’, falava aos amigos sentada na areia da praia.

“Ouço o cantar das cigarras, as cores ressaltadas, o brilho do sol sobre prédios, carros, areia, pedras e mar. Parece que uma energia carrancuda se dissipa com o chegar do verão. O poder do sol é realmente mágico. E há uma indecisão no tempo. Não. Talvez seja uma decisão. Aquele sol quente, tostando a pele, e de repente o tempo fecha. Chegam as nuvens, cai a chuva forte, como um choro de mulher magoada – visceral, ininterrupto. Os banhistas que douram seus corpos fogem apressados, resmungando seu dia de sol interrompido.

A chuva para. Como num soluçar, ficam os pingos remanescentes. E logo o tempo vai abrindo. As nuvens negras indo embora. Como se o vento soprasse nos ouvidos dela um consolo, um eu te amo. E assim o sol voltava tímido, numa cor branda. Como que se ela se confortasse com aquelas três palavras sopradas. E ganhando força a interpretação, o soluço já era pouco e espaçado – como a água que sobrava na areia molhada da praia. E ela, que se alegrava, tinha o sorriso metaforizado pela força arrebatadora que o sol ganhara. Imponente e sedutor crescia atrás dos Dois Irmãos formando uma paisagem que hipnotizava o vendedor de mate e os turistas encantados com suas máquinas fotográficas empunhadas. Enquanto isso os bon-vivants aplaudiam o espetáculo das pedras do Arpoador. Cazuza achava aquilo tudo cafona. Ela deitava na areia lembrando as palavras, contemplando o sol e aguardando que o vento soprasse de novo as palavras”.

Acabou de falar e seus amigos riram. Indagaram se estava apaixonada. Afirmou. “Estou encantada pelo verão”.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Sem fantasia

Pegou o isqueiro, ameaçou acender um cigarro. Hesitou. Olhou para o lado e contemplou os cabelos daquela mulher. Eram dois corpos relaxados pelo exercício do prazer, ali, esticados na horizontal. Esqueceu-se momentaneamente do ímpeto de fumar que tivera há dois segundos. Não era fumante. Mas se achava protagonizando um filme europeu quando acendia o tabaco depois de transar.

Teve um surto. Nunca antes tivera coragem de pedir a nenhuma mulher que realizasse alguma fantasia. Às vezes batia papo na internet e fazia meia dúzia de sacanagens via webcam. Mas no tête-a-tête algo lhe impedia. O medo de um fora, talvez. Mas naquele dia teve coragem.

Fechou os olhos - num quase não querer sentir a resposta, apenas ouvir - e ao pé do ouvido susurrou:

- Tenho loucura em te ouvir cantar.

Travou. Respirou. Tentou decifrar o silêncio que teve como resposta. Franziu os olhos, numa crença de que se os fechasse ainda mais pudesse ter mais coragem. Pegou fôlego como se fosse atravessar uma piscina a nado e continuou:

- Mas não assim, no dia-a-dia. Queria que se vestisse como uma diva e interpretasse uma música. Com vigor, meio dramática. Aqui. Na cama.

Continuou de olhos fechados. Parecia que assim doeria menos a suposta negativa.

- Mas você sabe que sou tímida.
- Mas essa é a graça.
- Como assim?
- Se você não tivesse vergonha eu não teria tanta vontade.
- Eu hein...
- Por favor. Não te peço mais nada. Juro.
- Que prazer mais besta...

Calou-se. Estampou em seu rosto um descontentamento amargo. Não resmungou. Não gostava de pirraça. Virou-se para o lado e dormiu. De forma crescente debatia-se enlouquecidamente. A mulher, semiacordada, espiava sem entender nada. Com um penteado adequado e uma idumentária de diva, ela cantava uma canção de Dalva de Oliveira. Por alguns instantes hesitou. Olhava para baixo como quem não conseguia encarar a plateia. Tomou um gole de whiskey e no microfone fake mudava a canção, num rompante, para um clássico de Maria Bethânia. Incorporou. Apropriou-se da música como a paixão se apropria da alma. Já sem pudor algum, ia ao pé do ouvido de quem havia clamado por aquela encenação e cantava.

Fizeram o melhor sexo de sua vidas até aquele momento. Acordou e gozou. Voltou a dormir triste porque era sonho.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Baile das Varizes

Foi numa dessas conversas fiadas que a gente tem para passar o tempo que eu despertei essa história. Na ocasião, voltava da praia, depois de um sol de quase dezembro de uma quarta-feira prolongada pós-trabalho. Delícias do horário de verão. Num riso descontrolado, efeito do relaxamento, eu e Gustavo falávamos meia dúzia de besteiras quando me lembrei de Brasa. E só de lembrar de sua imagem, ri. Ao mesmo tempo tive alguns segundos em que fui tomada pela ternura.

Meu pai sempre contou histórias de Brasa. Meus irmãos ganharam a tradição. E não me importei de encarnar um papagaio pra fazer o mesmo. O fato é que Brasa é uma figura distinta. Não poderia dizer precisamente quantos anos ele tem. Mas apostaria que tem seus 75. Não sei também sua profissão. Nem seu nome. Sei apenas que é um senhor muito conhecido em São Pedro D’Aldeia por seus feitos. Ou melhor. Pela forma engraçada como conduz as situações. Ele é o responsável pela festa de São Sebastião da cidade. Embora o santo padroeiro seja São Pedro existe ali na Praia da Pitória, bairro onde Brasa reside, o costume de comemorar a data do santo padroeiro do Rio de Janeiro. Já virou piada na cidade. Quando ocorre o evento Brasa manda colocar uma faixa que diz: “Festa de São Sebastião nos dias 25, 24 e 23 de janeiro”.

Essa era corriqueira. Assim como a do mate leão. Dizem as más línguas que a mulher de Brasa pedira a ele certa vez que comprasse um veneno para matar ratos. Eis que o marido volta da rua com uma caixa de mate leão. Indagado sobre a confusão ele responde: “Se mata um leãozão grandão, não vai matar um ratinho pequenininho”. Eu ria. Mas a minha favorita mesmo era a seguinte: o filho de um senhor muito conhecido na aldeia havia falecido. Ele, impressionado, pediu que Brasa providenciasse um carro que anunciasse na cidade a morte de seu filho. Brasa saiu e retornou nos últimos momentos do enterro. Com pesar, se reportou ao senhor e falou: “Olha, dessa vez eu na consegui. Mas para o seu próximo filho, eu consigo. Prometo”.

A última vez que o vi, faz alguns anos. Talvez uns seis. Ou oito. Ele tirava a mãe de uma amiga para dançar ali próximo ao coreto, no “Dança na Praça”. Achava engraçada aquela novidade. Um conjunto tocava enquanto pessoas dançavam músicas do Baile das Varizes ali, em um palco-quase-teatro-de-arena. Só hoje fez sentido aquilo tudo. Era culpa do verão. Ninguém suportaria dançar no calor senegalês do São Pedro Esporte Clube no verão. Só mesmo na praça. Contava a Gustavo isto quando num riso incontido ele me interrompeu. “É o que? Baile das Varizes?”. Também não me contive. Aquele nome esteve sempre tão presente e era tão normal falá-lo, ainda que achando engraçado, que parei pra pensar na sacanagem dos organizadores do baile com o mulherio aldeense. As donas sempre tão impecáveis, com aqueles penteados de Lions Club, vestiam roupas elegantes e a maquiagem era retocada no banheiro a cada drink. Aquela pompa toda para ir ao... Baile das Varizes.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Na engrenagem de Mariana Terra

Mariana Terra tem uma voz firme e um olhar que estaciona no do interlocutor quando conversa. Duas características marcantes e, talvez, imprescindíveis para realizar seu trabalho de atriz com excelência. Em cartaz no espetáculo Nise da Silveira – Senhora da Imagens, ela mistura corpo, voz e muita emoção em um trabalho arrebatador. A apresentação, que se tornou uma catarse diária, já que sua história se entrelaça com a da psiquiatra alagoana, traz à tona as vísceras do ser humano e sua capacidade de lidar com os mistérios do inconsciente.

O teatro é uma engrenagem. Do lado de cá, da plateia, talvez não tenhamos noção desse maquinário. Um espetáculo simples, sem muita pirotecnia, pode dar mais trabalho do que sonha a nossa vã ignorância.

Desde a escolha do texto – ou da feitura do mesmo – passando pela escolha do elenco, cenário, figurino, iluminação, música, profissionais envolvidos... Ufa! E tudo isso cabendo dentro do orçamento (que quase sempre é curto).

Passado isto, vêm os ensaios, que dão forma ao espetáculo. Tira-se aqui, coloca-se ali e, como numa pintura, a arte vai ganhando corpo. Todos esses detalhes para serem apreciados em apenas um instante. A fugacidade do teatro é espantosa, ao mesmo tempo que muito atraente. Quem senta naquela poltrona, deve se sentir um privilegiado pelo simples fato de que aquela cena jamais se repetirá daquela forma.

E esta engrenagem não para por aí. Na hora do “vamos ver”, outros detalhes estão ali: marcação de palco, troca de figurino, posicionamento de luz, não atropelar o texto, aguardar a deixa (quando não é um monógolo), lidar com o improviso... Junte-se a isso uma plateia imperiosa, de olhos atentos, certas vezes intimidadora e... temos um tarefa árdua. Realizá-la em grupo não é fácil, imagine sozinho.
Mariana Terra encarou este desafio. Desde os 10 anos de idade vive para o teatro. Em depoimento ao Onde Está O Óleo?, Mariana contou sua trajetória, com passagens pela CAL (Casa de Artes de Laranjeiras), Escola de Dança e Faculdade de Dança - Angel Vianna, até chegar à Itália, onde conheceu a Commedia Dell`arte. Mariana também passou pela Inglaterra, seu país de origem, estudando com Peter Brook, um dos dramaturgos contemporâneos mais conceituados.

Para viver Nise da Silveira – Senhora das Imagens, ela entrou em um processo visceral. Com sua historia de vida intimamente ligada à da alagoana, Mariana mergulhou profundamente na vida da psiquiatra, que modificou o tratamento de pessoas com transtornos mentais. O pai de Mariana, Rafaelle Infante, foi discípulo de Nise. Também psiquiatra, ele utilizou textos de Luigi Pirandello em peças de teatro com seus pacientes, utilizando a arte como instrumento de vazão à pulsão dessas pessoas. Mariana, que perdeu o pai muito nova, revisita sua história a cada dia, numa catarse instigante e assustadora.

Os litros d` água que a atriz perde a cada sessão devem eliminar todo o peso desse processo. O espetáculo, emocionante por si só, ganha uma beleza ainda maior quando se sabe da história de Mariana-Rafaelle-Nise.

Com direção de Daniel Lobo, coreografia de Ana Botafogo e repertório exclusivo, assinado por João Carlos Assis Brasil, a peça tem um jogo de luz dinâmico, ágil e instigante. Dado o blackout, não se sabe onde Mariana aparecerá na próxima cena. Uma ótima pedida para quem quer se emocionar e conhecer a história de Nise da Silveira.



"Nise da Silveira – Senhora das Imagens”
Realização: Essencial Cia de Teatro
Interpretação e co- dramaturgia: Mariana Terra
Dramaturgia e direção: Daniel Lobo
Coreografia: Ana Botafogo
Trilha original: João Carlos Assis Brasil
Participações de Carlos Vereza (voz) e de Ferreira Gullar (em vídeo)
Local: Centro Cultural Correios (Rua Visconde de Itaboraí, 20 – Centro)
Capacidade: 200 lugares
Temporada: De 09 de setembro a 23 de outubro de 2011. De quinta a domingo, às 19h.
Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia-entrada para estudantes, idosos e professores). A bilheteria funciona de quinta a domingo a partir das 16h. Reservas: (21) 9607-9593 .
Duração: 90 minutos.
Não recomendável para menores de 16 anos.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Solução de vida

Fez um Tratado de Tordesilhas quando poderia usar três palavras: eu te amo.
Fez um tratado mental, virtual, sexual, lexical, quando queria apenas dizer.
Fez da sua vida um tratado - mental, sexual, lexical... Estacionário.
Fazia-se tratados de todo tipo. Não só o de Tordesilhas. Conseguia prolongá-los até transformá-los em relatórios da ONU.
Eram tratados de si para si. Diálogos-monólogos. Um papo com o espelho, só que sem reflexo. Só reflexão.
Era assim.
Fez tratados e relatórios - mentais, virtuais, sexuais, porém, pontualmente lexicais - quando o que queria era expressar o amor pela palavra.
Fazia um silêncio supersônico - similar a rajadas violentas, sonoras e inivisíveis - quando o que queria era dizer "não quero mais".
A palavra era sua maior paixão. E como todas as maiores de sua vida, platônica. Descobriu que não sabia amar.
E era o paradoxo de não conseguir amar o que mais amava que lhe afligia. Entendeu parte de si quando fez esta conexão.
Foi aí que, no auge de sua juvetude, quis ir pelos ares. Tanto fazia se da Pedra da Gávea, do Dois Irmãos ou de um apartamento na Glória com vista pro Aterro. Faltou coragem.
Covardia corroborada pelos momentos de ilusão com a vida. Fato que a deixava colocar Solução de Vida, do Paulinho da Viola, por longos períodos no mute.
Sabia que o "Emplastro Brás Cubas" jamais seria fabricado, mas, tola, via na piada uma forma de suportar mais um dia.
Pensou ser feliz em alguns momentos - aqueles em que interpretava o bobo da corte. Ou aqueles em que suas vísceras pareciam um lugar-comum diante dos ouvidos de alguém que também vivesse a sua incessante angústia.
Continuou vivendo.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O dia em que encontrei Sigmund Freud


Antes que eu tenha qualquer problema, aviso que esta é uma entrevista de ficção, portanto, sem compromisso com dados precisos, informações verdadeiras e etc.
Apenas uma brincadeira de exercício da escrita.

Foi numa tarde de outono em que eu e Sigmund Freud entramos numa onda. Em uma máquina do tempo, ele veio ao futuro, no século XXI. Eu, repórter inexperiente, não sanei meu desejo de visitá-lo no passado. Quando enviei minha comunicação, Dr. Zig foi enfático: "Eu irei ao futuro ver como anda este mundo". Obediente, aceitei. A entrevista da minha vida, que nunca aconteceu e jamais ocorrerá, se passa aqui, em algumas linhas. Onde quer quer você esteja, não mande me matar!

Onde Está O Óleo?Freud, quando você criou a Psicanálise, imaginou que ela sobreviveria a, pelo menos, um século de existência?

Sigmund Freud – Quando descobri que havia algo no ser humano que ele mesmo desconhecia, fora de sua consciência e que contradizia tudo o que se pensava sobre a razão, pensei que estava em uma viagem de cannabis. Cheguei a cogitar que pudesse ser um sonho (vide interpretação), mas então percebi que se tratava de uma descoberta. Me senti como Sherlock Holmes tentando desvendar um mistério. Achei tão curioso aquele meu insight, que resolvi me debruçar sobre o assunto. Fiz diversos ensaios sobre a minha criação. E assim como a Bíblia, a maior ficção que virou “cartilha” para muitos seres humanos, achei que seria inovador e ousado se a minha ficção também se tornasse um modo de viver. Pensei que ultrapassaria o apenas ‘estar’ de uma teoria. Mas é claro que, quando eu escrevia a Fliess minhas constatações, quando eu dizia a ele cada nova pista de meu mistério, pensava que se tratava apenas de um ‘realize’ que dividia com um amigo. Eu escrevia somente o que um alquimista falaria ao um colega de profissão sobre um novo experimento. Jamais pensei que nossas correspondências seriam compradas em formas de livro, 100 anos depois. Embora fosse meu desejo que minha ficção fosse lida e aplicada, não tinha noção dessa prospecção.


Onde Está O Óleo? Pegar os sonhos como material de investigação e, transformar isso em um modo de interpretar a vida de um sujeito, não lhe pareceu ousado demais, ao mesmo tempo em que muito original?

SF- Você é mesmo muito jovem. O original só pode vir da ousadia. Apostar em um desejo e em uma ideia é o princípio para transformar o simples em algo original, perene. Taí meu amigo Albert Einstein para corroborar com isso. (“Se, a princípio, a ideia não é absurda, então não há esperança para ela”) Não é possível criar algo singular se não se apostar, ainda que eu acredite que tudo é uma grande ficção ou ousado demais. Finalizei “A interpretação dos sonhos” em 1899, mas foi um material que veio inaugurar o século XX, em 1900. Talvez tenha sido a minha primeira obra relevante, e, a partir daí as pessoas passaram a deixar de rejeitar o que falava e a prestar mais atenção no meu discurso. Interpretar os sonhos foi algo que surgiu quando eu trabalhava como neurologista, ainda descobrindo a neurose.Investiguei os sonhos e percebi que eles estavam sempre relacionados ao cotidiano de minhas pacientes e, então, pude notar que aquilo queria dizer algo. Até chegar a conclusão que o sonho muitas vezes pode representar a realização de um desejo, foram muitos atendimentos e muitas noites sem dormir.

Onde Está O Óleo?Como foi o processo de criação da Teoria da Sexualidade? Você esperava que a sociedade se chocasse tanto com o que você propôs?

SF
– A Teoria da Sexualidade foi o que mais interferiu na minha imagem. Descobrir que a sexualidade nasce com o sujeito e que ainda bebê uma criança pode, sim, ficar excitada, foi uma questão de muita observação. É algo que qualquer um pode se ater e notar. Qualquer pessoa que coloque uma criança acordada próxima a um casal transando, é passível de vê-la excitada. Essa descoberta foi apenas fruto de uma longa dedicação à minha observação. O que me incomoda é saber (através da máquina do tempo) é que em pleno século XXI muita gente ainda recalque essa constatação. Colocar a criança como inocente é ir contra tempos de estudos que tive e também ir contra a toda coragem que tive de tornar isto público.


Onde Está O Óleo?O Complexo de Édipo é um conceito que todos citam quando falam de você. O que você acha dessa repercussão?
SF – Acho reducionista. Basear a dependência do filho de sua mãe a essa belíssima tragédia grega foi um momento de contemplação. Pude enxergar no Édipo, um sujeito que estava ligado à mãe, ainda que não a conhecesse. Minha teoria sobre o recalque teve base nessa tragédia. Mas, além disso, está a castração. A psicanálise não teria valor algum se eu não tivesse elaborado o conceito de castração. É o momento mais bonito do Édipo, quando ele está em Antígona, cego, castrado, sem revolta. Ali, humilde, ele consegue chegar ao momento mais bonito em que um ser humano pode chegar, que é o de não se saber o que fazer. É o momento onde se assume a impotência, a falta de poder para realizar algo. E essa beleza é reduzida a um “bla, bla, bla” que pretende transformar o Complexo de Édipo em um conceito fechado, numa fórmula.

Onde Está O Óleo? O que você tem a dizer sobre o momento de análise? Você acha que o psicanalista atual está preparado para clinicar?
SF – A análise é um momento do sujeito. Ele diz, diz, diz e só depois aquilo vai fazer sentido. Ele pode passar algumas sessões falando a mesma coisa, sem perceber. Pode falar de assuntos diferentes achando que nada se encaixa. O psicanalista nada mais é que alguém que passou por diversas angústias semelhantes ou divergentes a de seu “paciente ou cliente”. Ele, aparentemente, direciona o que o analisando diz. Mas, na verdade, tem a função de um altar. O sujeito que crê na doutrina católica, por exemplo, reza diante de um altar crendo naquela força. É como o suplicante que vai se livrar de sua culpa no divã. O analista é como aquela imagem de Nossa Senhora ou qualquer outro santo. Está ali para dar sentido ao ritual de falar. É bem verdade que, com sua experiência, ele é capaz de pontuar, falar e dar forma às questões que, talvez, o analisando sozinho não pudesse dar conta. Mas o analista também é um ser humano e, por isso, está sujeito a equívocos.

Onde Está O Óleo?Para você, a formação psicanalítica está a altura da de sua época?
SF – O que acho é que a complacência com a mistura de pensamentos é muito grande. Expulsei Jung (Carl Jung) de meu grupo de estudos por conta de sua mistura. Deu no que deu. Veio ele com seus arquétipos. Posso dizer que isso é uma afronta à psicanálise que tanto se dedica à quebra de discurso do sujeito. Criar símbolos que signifiquem o ser humano é o que há de mais patético. As pessoas, que tanto querem respostas prontas e fáceis; que não querem se deparar com sua inquietude, com sua angústia, se contentam facilmente com esta interpretação fácil e cômoda. Arquétipos facilitam o processo os quais cada um tem que fazer por si. Jung não suportou o desamor e a crítica. Teve de criar algo de fácil alcance e compreensão para ser amado. Ele não compreendeu o meu esforço explicitado em “Psicologia de grupo e análise do ego”.

Onde Está O Óleo?Você acha que sua dedicação à criação da psicanálise tem uma repercussão positiva, atualmente?
SF - Não. Acho que a maioria das pessoas ignora o meu grande feito, que foi a descoberta do inconsciente. As pessoas continuam achando que têm controle sobre as coisas e que têm poder de escolha, sem saber que isso é maior que elas. Mal sabem a força do inconsciente e o ignoram completamente. A minha Teoria da Sexualidade também foi solenemente ignorada. Digo isto porque vejo a crença na inocência das crianças. Acho a infância uma fase lúdica e, por isso, muito interessante e fácil de ser contemplada.Como seu superego ainda está em construção, a criança se torna muito mais interessante. Mas acho que é a crença na inocência delas e falta de atitudes enérgicas em virtude dessa crença, que deixam o mundo cada vez mais bobo e inabitável.

Onde Está O Óleo?E quanto ao superego. Como você acha que o mundo contemporâneo encara esse conceito?
SF –
Acho que superego virou uma palavra muito utilizada em mesa de bar. As pessoas não se tocam da grandiosidade desse conceito e o quão pejorativo ele pode ser na vida de alguém. Superego é opressor. E ainda que seja necessário para a formação e educação das pessoas, ele é categoricamente opressor. Virou uma palavra corriqueira, que pessoas que nem estão em análise utilizam. Tenho síncopes a cada vez que ouço essa palavra mal empregada. Gostaria de dizer que estou farto dessa banalização do jargão psicanalítico. Também tenho ojeriza dessa gente “cool” que muito fala, mas pouco se debruça a fazer algo, de fato, importante para suas vidas. E quero dizer que esse “bla, bla, bla” com perguntas pouco consistentes também não me apraz. Fico por aqui.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Na frigideira de Laura Zandonadi

Laura Zandonadi tem uma voz encantadora. É fácil identificar, em uma simples conversa, a beleza de seu timbre. Mas uma bela voz nem sempre vem acompanhada de afinação e musicalidade. Esse não é o caso dela.

Niteroiense, moradora de Pendotiba, Laura começou a se dedicar ao canto quando tinha 12 anos. Hoje, aos 24, após estudar em lugares como o Conservatório Vila-Lobos, a Escola Portátil de Música e ter aulas com grandes professores, ela canta com segurança e firmeza, emocionando a quem se dispor ouvi-la com atenção.

Sua particularidade pode ser definida em uma frase: saber separar o joio do trigo. Ela é daquelas que demora a fazer um show, leva tempo para fazer uma canção e escolhe o repertório a dedo. Opinativa e seletiva faz com que o seu trabalho seja claramente autoral.

Tanto que em seu último show (no dia 20 de julho), mesmo com um repertório de outros artistas, a música tinha a sua cara.

Encontro inusitado
Há quem diga que as melhores coisas nascem do improviso. E o último show de Laura aconteceu assim. Convidada para um sarau na casa de um amigo em comum, ela conheceu Eduardo Tozzato, pianista brasileiro que mora em New Orleans há 15 anos. Na ocasião, eles descobriram uma grande sintonia musical e Eduardo a convidou para um Gig (uma espécie de show informal). O resultado foi um show intimista, com um repertório recheado de Caetano e Gil, passando por Stevie Wonder, Norah Jones e Elis Regina. Arranjos jazzistas deram uma roupagem ora mais sensível, ora mais dançante às músicas escolhidas.

Para completar o time, Laura convidou Fábio Fontoura (baterista) e Thaizinho Costa (baixista). No vídeo abaixo você confere um bate-papo com Laura, que conta onde está o seu óleo. Aproveite e deleite-se ao ouvi-la interpretando “Alguém Cantando”, de Caetano.


Onde está o óleo?
Em depoimento ao Onde está o óleo?, Laura conta sua trajetória na música. "Eu me interessei em cantar por incentivo de uma amiga que me achava muito afinada e dizia que eu poderia apurar isso com aulas de canto. Fiz aulas, fui me apresentando, montando banda… Foi algo que começou sem querer, mas desde as minhas primeiras apresentações eu não quis mais sair do palco. Ele virou a minha paixão, o lugar onde eu mais gosto de estar. Eu sempre me identifiquei muito com a música brasileira, então os compositores nacionais são os quais mais me afinizo. Gosto muito de Djavan, Chico Buarque e esses compositores que temos a grande sorte de ter no Brasil."

E como o objetivo deste blog é procurar o óleo alheio, Laura fala da música como o lubrificante de sua engrenagem. "A música faz toda a diferença na minha vida. A música é a minha vida. O meu óleo com certeza esta nela."

Ela também falou o que acha ser fundamental para cada um de nós encontrar o seu óleo. "Não dá pra sofrer as pressões do mercado, da sociedade. É preciso olhar pra dentro para procurar seu próprio óleo. Não vá pelo óleo dos outros, vá pelo seu, seja música, seja economia, engenharia, ou qualquer forma de arte alem da musica, é necessário olhar pra dentro. Se não não engrena e pode nos atrapalhar pelo resto da vida".

Laura continua colocando óleo no seu maquinário. Ontem aconteceu a festa de 75 anos das rádio MEC e Nacional. Um palco foi montado no Campo de Santana, das 13h às 16h, com diversas atrações (em sua maioria artistas pra própria rádio), dentre eles, Laura. Foi um grande programa especial transmitido ao vivo pelas duas estações de rádio. Na ocasião, Laura fez um pout-pourri de músicas da época de ouro da rádio, que têm como tema a resistência da americanização das canções brasileiras, como por exemplo ‘Brasil Pandeiro’, de Assis Valente e ‘Disseram que voltei americanizada’, sucesso gravado por Carmem Miranda.

No dia 17 de setembro, ela se apresentará na Praça Araribóia, em Niterói, às 16h20, na Festa da Música, com “Os pingo da chuva”. Em 2009, Laura juntou-se a Leandro Bronze (Guitarra) Alexandre Stankevicins (Baixo), Eduardo Magliano (Bateria) para uma homenagem aos Novos Baianos. O grupo batizado de “Os pingo da chuva” se apresentou no Teatro da UFF com releituras da turma do Swing de Campo Grande. O trabalho foi tão bacana, que agora, em 2011, eles foram convidados para participar do evento. Confira:

A menina dança

Ouça Laura Zandonadi aqui


terça-feira, 6 de setembro de 2011

Photoria expõe novo conceito de fotografia na ArtRio

A Photoria, conceito de fotografia realizado por Carla Alves e Gustavo Otero há três anos, expõe o seu trabalho artístico na ArtRio, de 8 a 11 de setembro. Esta é a primeira edição da Feira Internacional de Arte Contemporânea do Rio de Janeiro, que promete levar ao público 80 galerias nacionais e internacionais, abrangendo desde a vanguarda modernista até a arte contemporânea.

Carla Alves e Gustavo Otero são uma dupla de fotógrafos que compartilham seus cliques desde 2009, formando a Photoria. Com uma proposta de autoria coletiva, eles apostam em um novo conceito de fotografia, provando com seu trabalho que dois olhares diferentes apuram muito mais do que poderia ser feito por uma pessoa apenas. Há três anos eles desenvolvem suas atividades artísticas, buscando soluções criativas para seus clientes em ocasiões diversas. Registram eventos, como shows, e fazem também campanhas publicitárias.

O olhar e a percepção da dupla captam não só imagens triviais e corriqueiras, passíveis de serem vistas por qualquer espectador. Sua sensibilidade permite ângulos inusitados, que focam detalhes, a ponto de transformar uma cena. Um palco iluminado com instrumentos musicais, antes do show, pode nos dar a impressão de um mero cenário pronto para receber sua estrela. Vistos da plateia, podem parecer elementos que precisam do artista para ter vida. Não é isso que mostram as fotos de Gustavo e Carla. A beleza de um instrumento com um foco de luz, por exemplo, pode ser apreciada nessa exposição.

E se um objeto inanimado é capaz de provocar emoções quando retratado por olhares artísticos, momentos que têm a arte como pano de fundo transbordam sensibilidade e beleza. Isso pode ser conferido nos diversos shows fotografados pela dupla. Um rifle de guitarra de um artista no auge de seu show e a emoção de um cantor que levanta multidões são alguns dos cliques que poderão ser conferidos por quem passar pelo Pier Mauá.

Tratanto-se da ArtRio, a alma carioca não poderia deixar de ser exposta. O Parque das Ruínas, em Santa Tereza, foi palco da FLIST (Festa Literária de Santa Teresa), em 2010. O clima do charmoso bairro da cidade maravilhosa proporcionou à dupla lindos cliques. Os cariocas também inspiraram a última campanha institucional da rádio SulAmerica Paradiso, patrocinadora da exposição, que retrata a criatividade, a irreverência e a parceria dos nativos do Rio de Janeiro. As belas paisagens irresistíveis não passaram despercebidas aos olhares da Photoria durante o trabalho da campanha.

A exposição da Photoria é uma parceria com a SulAmerica Paradiso, que reúne os trabalhos feitos por Gustavo e Carla para a Rádio Oficial do Rio. Juntos eles mostram ao grande público o prazer de se viver em terra carioca.

SERVIÇO

Data: 07 de setembro de 2011 – restrito a convidados. 08 a 11 de setembro de 2011 – aberto ao público.
Local: Píer Mauá, estande Rádio SulAmerica Paradiso
Endereço: Av. Rodrigues Alves, sem n° / entre os armazéns 2 e 3
Horário de visitação: 12h às 20h
Ingressos: R$ 30 (estudantes, mediante apresentação de carteira, e para maiores de 60anos pagam meia)
Formas de pagamento: dinheiro, cheque ou cartões de crédito e débito.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Camisa de força

Tenho uma estranha mania de inventar diálogos. Andando na rua, circulando dentro de casa ou tomando banho, falo em voz alta conversas que poderiam acontecer entre pessoas que conheço, ou, na maioria das vezes, entre mim e algum conhecido.

Quando estou na rua, sempre me pego sendo observada por alguém que se diverte com a minha mania. Certas vezes disfarço, seguro o “microfone” do fone que está sempre pendurado em meu ouvido e finjo que falo ao telefone.

Minha mãe sempre lança um “você tem que voltar pra psicóloga”. Mal sabe ela é que o eco de sua implicância já me fez falar sobre isso diversas vezes no divã. Naquela época, o então “Grande Mestre” – pegando carona no jargão de Cezar Carazza – dizia que isso era bobagem e a minha “criatividade” deveria ser aproveitada para escrever ou para o teatro.

Outras vezes dava-se um significado, esse mais profundo e instigante, que era esclarecedor sobre o meu modo de agir na vida. Como não é simples me livrar dessa mania, resolvi tentar transformar esse hábito em produção. E para não expor histórias reais, resolvi promover encontros com pessoas que eu gostaria de encontrar um dia e imaginar um possível diálogo.

Fiz uma viagem no tempo e bati um papo com Sigmund Freud. No próximo capítulo.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Na minha, na sua, na nossa frigideira

Há momentos na vida em que tudo emperra, engasga. E assim como a corrente da bicicleta que precisa de um óleo para funcionar, como a maçaneta que depois de um tempo precisa de um lubrificante, e como o sexo que sem tesão não funciona, precisamos de algo que faça a nossa vida deslizar.

Pode ser um hobby, ou alguma atividade que seja tão fundamental na vida de alguém, a ponto de se tornar o seu próprio trabalho. A busca deste blog é essa, saber onde está o óleo. O que interessa aqui é ouvir histórias de quem procura transformar a chatice que pode se tornar a vida cotidiana, em momentos de sofisticação do prazer. Esse óleo pode ser a prática de fazer croché, um esporte, arte ou qualquer forma de expressão que dê sentido à vida do indivíduo em questão.

Nesta investigação sobre onde está o óleo alheio, vou atrás de nada menos que meu próprio óleo, ainda para mim desconhecido. Talvez ele seja ouvir histórias e depois contá-las. Ou não. Estou aqui para descobrir. E nesta empreitada, conto com a ajuda de Gustavo Otero, meu amigo e fotógrafo. Dono de uma sensibilidade singular, ele retratará estes personagens com um olhar particular e diferente.

Azeitamos da porta à economia e, tanto no sexo quanto na cozinha, lá está ele. E na sua frigideira, tem alguma coisa agarrando? Onde está o seu óleo?

Mais uma da séria série "Aprendendo com quem sabe"

Mais um dos favoritos!

A Celebridade é um Plebeísmo :: Fernando Pessoa

Às vezes, quando penso nos homens célebres, sinto por eles toda a tristeza da celebridade.

A celebridade é um plebeísmo. Por isso deve ferir uma alma delicada. É um plebeísmo porque estar em evidência, ser olhado por todos inflige a uma criatura delicada uma sensação de parentesco exterior com as criaturas que armam escândalo nas ruas, que gesticulam e falam alto nas praças. O homem que se torna célebre fica sem vida íntima: tornam-se de vidro as paredes da sua vida doméstica; é sempre como se fosse excessivo o seu traje; e aquelas suas mínimas acções - ridiculamente humanas às vezes - que ele quereria invisíveis, coa-as a lente da celebridade para espectaculosas pequenezes, com cuja evidência a sua alma se estraga ou se enfastia. É preciso ser muito grosseiro para se poder ser célebre à vontade.

Depois, além dum plebeísmo, a celebridade é uma contradição. Parecendo que dá valor e força às criaturas, apenas as desvaloriza e as enfraquece. Um homem de génio desconhecido pode gozar a volúpia suave do contraste entre a sua obscuridade e o seu génio; e pode, pensando que seria célebre se quisesse, medir o seu valor com a sua melhor medida, que é ele próprio. Mas, uma vez conhecido, não está mais na sua mão reverter à obscuridade. A celebridade é irreparável. Dela como do tempo, ninguém torna atrás ou se desdiz.

E é por isso que a celebridade é uma fraqueza também. Todo o homem que merece ser célebre sabe que não vale a pena sê-lo. Deixar-se ser célebre é uma fraqueza, uma concessão ao baixo-instinto, feminino ou selvagem, de querer dar nas vistas e nos ouvidos.

Fernando Pessoa, in 'Notas Autobiográficas e de Autognose'

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Quando a gente sente que não sabe escrever...

lê quem sabe!
Um dos meus textos favoritos:

O ex-covarde, por Nelson Rodrigues
Entro na redação e o Marcelo Soares de Moura me chama. Começa: - "Escuta aqui, Nélson. Explica esse mistério." Como havia um mistério, sentei-me. Ele começa: - "Você, que não escrevia sobre política, por que é que agora só escreve sobre política?" Puxo um cigarro, sem pressa de responder. Insiste: - "Nas suas peças não há uma palavra sobre política. Nos seus romances, nos seus contos, nas suas crônicas, não há uma palavra sobre política. E, de repente, você começa suas "confissões". É um violino de uma corda só. Seu assunto é só política. Explica: - Por quê?"

Antes de falar, procuro cinzeiro. Não tem. Marcelo foi apanhar um duas mesas adiante. Agradeço. Calco a brasa do cigarro no fundo do cinzeiro. Digo: - "É uma longa história." O interessante é que outro amigo, o Francisco Pedro do Couto, e um outro, Permínio Ásfora, me fizeram a mesma pergunta. E, agora, o Marcelo me fustigava: - "Por quê?" Quero saber: - "Você tem tempo ou está com pressa?" Fiz tanto suspense que a curiosidade do Marcelo já estava insuportável.

Começo assim a "longa história": - "Eu sou um ex-covarde." O Marcelo ouvia só e eu não parei mais de falar. Disse-lhe que, hoje, é muito difícil não ser canalha. Por toda a parte, só vemos pulhas. E nem se diga que são pobres seres anônimos, obscuros, perdidos na massa. Não. Reitores, professores, sociólogos, intelectuais de todos os tipos, jovens e velhos, mocinhas e senhoras. E também os jornais e as revistas, o rádio e a tv. Quase tudo e quase todos exalam abjeção.

Marcelo interrompe: - "Somos todos abjetos?" Acendo outro cigarro: - "Nem todos, claro." Expliquei-lhe o óbvio, isto é, que sempre há uma meia dúzia que se salve e só Deus sabe como. "Todas as pressões trabalham para o nosso aviltamento pessoal e coletivo." E por que essa massa de pulhas invade a vida brasileira? Claro que não é de graça nem por acaso.

O que existe, por trás de tamanha degradação, é o medo. Por medo, os reitores, os professores, os intelectuais são montados, fisicamente montados, pelos jovens. Diria Marcelo que estou fazendo uma caricatura até grosseira. Nem tanto, nem tanto. Mas o medo começa nos lares, e dos lares passa para a igreja, e da igreja passa para as universidades, e destas para as redações, e daí para o romance, para o teatro, para o cinema. Fomos nós que fabricamos a "Razão da Idade". Somos autores da impostura e, por medo adquirido, aceitamos a impostura como a verdade total.

Sim, os pais têm medo dos filhos, os mestres dos alunos. o medo é tão criminoso que, outro dia, seis ou sete universitários curraram uma colega. A menina saiu de lá de maca, quase de rabecão. No hospital, sofreu um tratamento que foi quase outro estupro. Sobreviveu por milagre. E ninguém disse nada. Nem reitores, nem professores, nem jornalistas, nem sacerdotes, ninguém exalou um modestíssimo pio. Caiu sobre o jovem estupro todo o silêncio da nossa pusilanimidade.

Mas preciso pluralizar. Não há um medo só. São vários medos, alguns pueris, idiotas. O medo de ser reacionário ou de parecer reacionário. Por medo das esquerdas, grã-finas e milionários fazem poses socialistas. Hoje, o sujeito prefere que lhe xinguem a mãe e não o chamem de reacionário. É o medo que faz o Dr. Alceu renegar os dois mil anos da Igreja e pôr nas nuvens a "Grande Revolução" russa. Cuba é uma Paquetá. Pois essa Paquetá dá ordens a milhares de jovens brasileiros. E, de repente, somos ocupados por vietcongs, cubanos, chineses. Ninguém acusa os jovens e ninguém os julga, por medo. Ninguém quer fazer a "Revolução Brasileira". Não se trata de Brasil. Numa das passeatas, propunha-se que se fizesse do Brasil o Vietnã. Por que não fazer do Brasil o próprio Brasil? Ah, o Brasil não é uma pátria, não é uma nação, não é um povo, mas uma paisagem. Há também os que o negam até como valor plástico.

Eu falava e o Marcelo não dizia nada. Súbito, ele interrompe: - "E você? Por que, de repente, você mergulhou na política?" Eu já fumara, nesse meio-tempo, quatro cigarros. Apanhei mais um: - "Eu fui, por muito tempo, um pusilânime como os reitores, os professores, os intelectuais, os grã-finos etc, etc. Na guerra, ouvi um comunista dizer, antes da invasão da Rússia: - "Hitler é muito mais revolucionário do que a Inglaterra." E eu, por covardia, não disse nada. Sempre achei que a história da "Grande Revolução", que o Dr. Alceu chama de "o maior acontecimento do século XX", sempre achei que essa história era um gigantesco mural de sangue e excremento. Em vida de Stalin, jamais ousei um suspiro contra ele. Por medo, aceitei o pacto germano-soviético. Eu sabia que a Rússia era a antipessoa, o anti-homem. Achava que o Capitalismo, com todos os seus crimes, ainda é melhor do que o Socialismo e sublinho: - do que a experiência concreta do Socialismo,

Tive medo, ou vários medos, e já não os tenho. Sofri muito na carne e na alma. Primeiro, foi em 1929, no dia seguinte ao Natal. Às duas horas da tarde, ou menos um pouco, vi meu irmão Roberto ser assassinado. Era um pintor de gênio, espécie de Rimbaud plástico, e de uma qualidade humana sem igual. Morreu errado ou, por outra, morreu porque era "filho de Mário Rodrigues". E, no velório, sempre que alguém vinha abraçar meu pai, meu pai soluçava: - "Essa bala era para mim." Um mês depois, meu pai morria de pura paixão. Mais alguns anos e meu irmão Joffre morre. Éramos unidos como dois gêmeos. Durante 15 dias, no Sanatório de Correias, ouvi a sua dispnéia. E minha irmã Dorinha. Sua agonia foi leve como a euforia de um anjo. E, depois, foi meu irmão Mário Filho. Eu dizia sempre: - "Ninguém no Brasil escreve como meu irmão Mário." Teve um enfarte fulminante. Bem sei que, hoje, o morto começa a ser esquecido no velório. Por desgraça minha, não sou assim. E, por fim, houve o desabamento de Laranjeiras. Morreu meu irmão Paulinho e, com ele, sua esposa Maria Natália, seus dois filhos, Ana Maria e Paulo Roberto, a sua sogra, D. Marina. Todos morreram, todos, até o último vestígio.

Falei do meu pai, dos meus irmãos e vou falar também de mim. Aos 51 anos, tive uma filhinha que, por vontade materna, chama-se Daniela. Nasceu linda. Dois meses depois, a avó teve uma intuição. Chamou o Dr. Sílvio Abreu Fialho. Este veio, fez todos os exames. Depois, desceu comigo. Conversamos na calçada do meu edifício. Ele foi muito delicado, teve muito tato. Mas disse tudo. Minha filha era cega.

Eis o que eu queria explicar a Marcelo: - depois de tudo que contei, o meu medo deixou de ter sentido. Posso subir numa mesa e anunciar de fronte alta: - "Sou um ex-covarde." É maravilhoso dizer tudo. Para mim, é de um ridículo abjeto ter medo das Esquerdas, ou do Poder Jovem, ou do Poder Velho ou de Mao Tsé-tung, ou de Guevara. Não trapaceio comigo, nem com os outros. Para ter coragem, precisei sofrer muito. Mas a tenho. E se há rapazes que, nas passeatas, carregam cartazes com a palavra "Muerte", já traindo a própria língua; e se outros seguem as instruções de Cuba; e se outros mais querem odiar, matar ou morrer em espanhol - posso chamá-los, sem nenhum medo, de "jovens canalhas".


RODRIGUES, Nélson. In A cabra vadia (novas confissões), Livraria Eldorado Editora S.A., Rio de Janeiro, s/data, págs. 7-10.



quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Sobre brincar de Tom e Jerry

Escrever – entre suas mil e uma funções – pode ser querer dizer a alguém, ou a muitos
alguéns, o que os olhos gritam, o que o peito guarda, o que a alma sente e o que a boca
cala. A mão é a amiga gentil da boca, que entra em ação quando a
outra está insegura.

(Trecho sexual ou literal, vide interpretação.)

Escrever é se distrair do caos, é só um instante, rápido e rasteiro, depois de uma
enxurrada de tentativas. Escrever é dar nó em pingo de éter.

Toró de parpite

processo criativo:

prolixo

pro lixo