quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Baile das Varizes

Foi numa dessas conversas fiadas que a gente tem para passar o tempo que eu despertei essa história. Na ocasião, voltava da praia, depois de um sol de quase dezembro de uma quarta-feira prolongada pós-trabalho. Delícias do horário de verão. Num riso descontrolado, efeito do relaxamento, eu e Gustavo falávamos meia dúzia de besteiras quando me lembrei de Brasa. E só de lembrar de sua imagem, ri. Ao mesmo tempo tive alguns segundos em que fui tomada pela ternura.

Meu pai sempre contou histórias de Brasa. Meus irmãos ganharam a tradição. E não me importei de encarnar um papagaio pra fazer o mesmo. O fato é que Brasa é uma figura distinta. Não poderia dizer precisamente quantos anos ele tem. Mas apostaria que tem seus 75. Não sei também sua profissão. Nem seu nome. Sei apenas que é um senhor muito conhecido em São Pedro D’Aldeia por seus feitos. Ou melhor. Pela forma engraçada como conduz as situações. Ele é o responsável pela festa de São Sebastião da cidade. Embora o santo padroeiro seja São Pedro existe ali na Praia da Pitória, bairro onde Brasa reside, o costume de comemorar a data do santo padroeiro do Rio de Janeiro. Já virou piada na cidade. Quando ocorre o evento Brasa manda colocar uma faixa que diz: “Festa de São Sebastião nos dias 25, 24 e 23 de janeiro”.

Essa era corriqueira. Assim como a do mate leão. Dizem as más línguas que a mulher de Brasa pedira a ele certa vez que comprasse um veneno para matar ratos. Eis que o marido volta da rua com uma caixa de mate leão. Indagado sobre a confusão ele responde: “Se mata um leãozão grandão, não vai matar um ratinho pequenininho”. Eu ria. Mas a minha favorita mesmo era a seguinte: o filho de um senhor muito conhecido na aldeia havia falecido. Ele, impressionado, pediu que Brasa providenciasse um carro que anunciasse na cidade a morte de seu filho. Brasa saiu e retornou nos últimos momentos do enterro. Com pesar, se reportou ao senhor e falou: “Olha, dessa vez eu na consegui. Mas para o seu próximo filho, eu consigo. Prometo”.

A última vez que o vi, faz alguns anos. Talvez uns seis. Ou oito. Ele tirava a mãe de uma amiga para dançar ali próximo ao coreto, no “Dança na Praça”. Achava engraçada aquela novidade. Um conjunto tocava enquanto pessoas dançavam músicas do Baile das Varizes ali, em um palco-quase-teatro-de-arena. Só hoje fez sentido aquilo tudo. Era culpa do verão. Ninguém suportaria dançar no calor senegalês do São Pedro Esporte Clube no verão. Só mesmo na praça. Contava a Gustavo isto quando num riso incontido ele me interrompeu. “É o que? Baile das Varizes?”. Também não me contive. Aquele nome esteve sempre tão presente e era tão normal falá-lo, ainda que achando engraçado, que parei pra pensar na sacanagem dos organizadores do baile com o mulherio aldeense. As donas sempre tão impecáveis, com aqueles penteados de Lions Club, vestiam roupas elegantes e a maquiagem era retocada no banheiro a cada drink. Aquela pompa toda para ir ao... Baile das Varizes.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Na engrenagem de Mariana Terra

Mariana Terra tem uma voz firme e um olhar que estaciona no do interlocutor quando conversa. Duas características marcantes e, talvez, imprescindíveis para realizar seu trabalho de atriz com excelência. Em cartaz no espetáculo Nise da Silveira – Senhora da Imagens, ela mistura corpo, voz e muita emoção em um trabalho arrebatador. A apresentação, que se tornou uma catarse diária, já que sua história se entrelaça com a da psiquiatra alagoana, traz à tona as vísceras do ser humano e sua capacidade de lidar com os mistérios do inconsciente.

O teatro é uma engrenagem. Do lado de cá, da plateia, talvez não tenhamos noção desse maquinário. Um espetáculo simples, sem muita pirotecnia, pode dar mais trabalho do que sonha a nossa vã ignorância.

Desde a escolha do texto – ou da feitura do mesmo – passando pela escolha do elenco, cenário, figurino, iluminação, música, profissionais envolvidos... Ufa! E tudo isso cabendo dentro do orçamento (que quase sempre é curto).

Passado isto, vêm os ensaios, que dão forma ao espetáculo. Tira-se aqui, coloca-se ali e, como numa pintura, a arte vai ganhando corpo. Todos esses detalhes para serem apreciados em apenas um instante. A fugacidade do teatro é espantosa, ao mesmo tempo que muito atraente. Quem senta naquela poltrona, deve se sentir um privilegiado pelo simples fato de que aquela cena jamais se repetirá daquela forma.

E esta engrenagem não para por aí. Na hora do “vamos ver”, outros detalhes estão ali: marcação de palco, troca de figurino, posicionamento de luz, não atropelar o texto, aguardar a deixa (quando não é um monógolo), lidar com o improviso... Junte-se a isso uma plateia imperiosa, de olhos atentos, certas vezes intimidadora e... temos um tarefa árdua. Realizá-la em grupo não é fácil, imagine sozinho.
Mariana Terra encarou este desafio. Desde os 10 anos de idade vive para o teatro. Em depoimento ao Onde Está O Óleo?, Mariana contou sua trajetória, com passagens pela CAL (Casa de Artes de Laranjeiras), Escola de Dança e Faculdade de Dança - Angel Vianna, até chegar à Itália, onde conheceu a Commedia Dell`arte. Mariana também passou pela Inglaterra, seu país de origem, estudando com Peter Brook, um dos dramaturgos contemporâneos mais conceituados.

Para viver Nise da Silveira – Senhora das Imagens, ela entrou em um processo visceral. Com sua historia de vida intimamente ligada à da alagoana, Mariana mergulhou profundamente na vida da psiquiatra, que modificou o tratamento de pessoas com transtornos mentais. O pai de Mariana, Rafaelle Infante, foi discípulo de Nise. Também psiquiatra, ele utilizou textos de Luigi Pirandello em peças de teatro com seus pacientes, utilizando a arte como instrumento de vazão à pulsão dessas pessoas. Mariana, que perdeu o pai muito nova, revisita sua história a cada dia, numa catarse instigante e assustadora.

Os litros d` água que a atriz perde a cada sessão devem eliminar todo o peso desse processo. O espetáculo, emocionante por si só, ganha uma beleza ainda maior quando se sabe da história de Mariana-Rafaelle-Nise.

Com direção de Daniel Lobo, coreografia de Ana Botafogo e repertório exclusivo, assinado por João Carlos Assis Brasil, a peça tem um jogo de luz dinâmico, ágil e instigante. Dado o blackout, não se sabe onde Mariana aparecerá na próxima cena. Uma ótima pedida para quem quer se emocionar e conhecer a história de Nise da Silveira.



"Nise da Silveira – Senhora das Imagens”
Realização: Essencial Cia de Teatro
Interpretação e co- dramaturgia: Mariana Terra
Dramaturgia e direção: Daniel Lobo
Coreografia: Ana Botafogo
Trilha original: João Carlos Assis Brasil
Participações de Carlos Vereza (voz) e de Ferreira Gullar (em vídeo)
Local: Centro Cultural Correios (Rua Visconde de Itaboraí, 20 – Centro)
Capacidade: 200 lugares
Temporada: De 09 de setembro a 23 de outubro de 2011. De quinta a domingo, às 19h.
Ingressos: R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia-entrada para estudantes, idosos e professores). A bilheteria funciona de quinta a domingo a partir das 16h. Reservas: (21) 9607-9593 .
Duração: 90 minutos.
Não recomendável para menores de 16 anos.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Solução de vida

Fez um Tratado de Tordesilhas quando poderia usar três palavras: eu te amo.
Fez um tratado mental, virtual, sexual, lexical, quando queria apenas dizer.
Fez da sua vida um tratado - mental, sexual, lexical... Estacionário.
Fazia-se tratados de todo tipo. Não só o de Tordesilhas. Conseguia prolongá-los até transformá-los em relatórios da ONU.
Eram tratados de si para si. Diálogos-monólogos. Um papo com o espelho, só que sem reflexo. Só reflexão.
Era assim.
Fez tratados e relatórios - mentais, virtuais, sexuais, porém, pontualmente lexicais - quando o que queria era expressar o amor pela palavra.
Fazia um silêncio supersônico - similar a rajadas violentas, sonoras e inivisíveis - quando o que queria era dizer "não quero mais".
A palavra era sua maior paixão. E como todas as maiores de sua vida, platônica. Descobriu que não sabia amar.
E era o paradoxo de não conseguir amar o que mais amava que lhe afligia. Entendeu parte de si quando fez esta conexão.
Foi aí que, no auge de sua juvetude, quis ir pelos ares. Tanto fazia se da Pedra da Gávea, do Dois Irmãos ou de um apartamento na Glória com vista pro Aterro. Faltou coragem.
Covardia corroborada pelos momentos de ilusão com a vida. Fato que a deixava colocar Solução de Vida, do Paulinho da Viola, por longos períodos no mute.
Sabia que o "Emplastro Brás Cubas" jamais seria fabricado, mas, tola, via na piada uma forma de suportar mais um dia.
Pensou ser feliz em alguns momentos - aqueles em que interpretava o bobo da corte. Ou aqueles em que suas vísceras pareciam um lugar-comum diante dos ouvidos de alguém que também vivesse a sua incessante angústia.
Continuou vivendo.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

O dia em que encontrei Sigmund Freud


Antes que eu tenha qualquer problema, aviso que esta é uma entrevista de ficção, portanto, sem compromisso com dados precisos, informações verdadeiras e etc.
Apenas uma brincadeira de exercício da escrita.

Foi numa tarde de outono em que eu e Sigmund Freud entramos numa onda. Em uma máquina do tempo, ele veio ao futuro, no século XXI. Eu, repórter inexperiente, não sanei meu desejo de visitá-lo no passado. Quando enviei minha comunicação, Dr. Zig foi enfático: "Eu irei ao futuro ver como anda este mundo". Obediente, aceitei. A entrevista da minha vida, que nunca aconteceu e jamais ocorrerá, se passa aqui, em algumas linhas. Onde quer quer você esteja, não mande me matar!

Onde Está O Óleo?Freud, quando você criou a Psicanálise, imaginou que ela sobreviveria a, pelo menos, um século de existência?

Sigmund Freud – Quando descobri que havia algo no ser humano que ele mesmo desconhecia, fora de sua consciência e que contradizia tudo o que se pensava sobre a razão, pensei que estava em uma viagem de cannabis. Cheguei a cogitar que pudesse ser um sonho (vide interpretação), mas então percebi que se tratava de uma descoberta. Me senti como Sherlock Holmes tentando desvendar um mistério. Achei tão curioso aquele meu insight, que resolvi me debruçar sobre o assunto. Fiz diversos ensaios sobre a minha criação. E assim como a Bíblia, a maior ficção que virou “cartilha” para muitos seres humanos, achei que seria inovador e ousado se a minha ficção também se tornasse um modo de viver. Pensei que ultrapassaria o apenas ‘estar’ de uma teoria. Mas é claro que, quando eu escrevia a Fliess minhas constatações, quando eu dizia a ele cada nova pista de meu mistério, pensava que se tratava apenas de um ‘realize’ que dividia com um amigo. Eu escrevia somente o que um alquimista falaria ao um colega de profissão sobre um novo experimento. Jamais pensei que nossas correspondências seriam compradas em formas de livro, 100 anos depois. Embora fosse meu desejo que minha ficção fosse lida e aplicada, não tinha noção dessa prospecção.


Onde Está O Óleo? Pegar os sonhos como material de investigação e, transformar isso em um modo de interpretar a vida de um sujeito, não lhe pareceu ousado demais, ao mesmo tempo em que muito original?

SF- Você é mesmo muito jovem. O original só pode vir da ousadia. Apostar em um desejo e em uma ideia é o princípio para transformar o simples em algo original, perene. Taí meu amigo Albert Einstein para corroborar com isso. (“Se, a princípio, a ideia não é absurda, então não há esperança para ela”) Não é possível criar algo singular se não se apostar, ainda que eu acredite que tudo é uma grande ficção ou ousado demais. Finalizei “A interpretação dos sonhos” em 1899, mas foi um material que veio inaugurar o século XX, em 1900. Talvez tenha sido a minha primeira obra relevante, e, a partir daí as pessoas passaram a deixar de rejeitar o que falava e a prestar mais atenção no meu discurso. Interpretar os sonhos foi algo que surgiu quando eu trabalhava como neurologista, ainda descobrindo a neurose.Investiguei os sonhos e percebi que eles estavam sempre relacionados ao cotidiano de minhas pacientes e, então, pude notar que aquilo queria dizer algo. Até chegar a conclusão que o sonho muitas vezes pode representar a realização de um desejo, foram muitos atendimentos e muitas noites sem dormir.

Onde Está O Óleo?Como foi o processo de criação da Teoria da Sexualidade? Você esperava que a sociedade se chocasse tanto com o que você propôs?

SF
– A Teoria da Sexualidade foi o que mais interferiu na minha imagem. Descobrir que a sexualidade nasce com o sujeito e que ainda bebê uma criança pode, sim, ficar excitada, foi uma questão de muita observação. É algo que qualquer um pode se ater e notar. Qualquer pessoa que coloque uma criança acordada próxima a um casal transando, é passível de vê-la excitada. Essa descoberta foi apenas fruto de uma longa dedicação à minha observação. O que me incomoda é saber (através da máquina do tempo) é que em pleno século XXI muita gente ainda recalque essa constatação. Colocar a criança como inocente é ir contra tempos de estudos que tive e também ir contra a toda coragem que tive de tornar isto público.


Onde Está O Óleo?O Complexo de Édipo é um conceito que todos citam quando falam de você. O que você acha dessa repercussão?
SF – Acho reducionista. Basear a dependência do filho de sua mãe a essa belíssima tragédia grega foi um momento de contemplação. Pude enxergar no Édipo, um sujeito que estava ligado à mãe, ainda que não a conhecesse. Minha teoria sobre o recalque teve base nessa tragédia. Mas, além disso, está a castração. A psicanálise não teria valor algum se eu não tivesse elaborado o conceito de castração. É o momento mais bonito do Édipo, quando ele está em Antígona, cego, castrado, sem revolta. Ali, humilde, ele consegue chegar ao momento mais bonito em que um ser humano pode chegar, que é o de não se saber o que fazer. É o momento onde se assume a impotência, a falta de poder para realizar algo. E essa beleza é reduzida a um “bla, bla, bla” que pretende transformar o Complexo de Édipo em um conceito fechado, numa fórmula.

Onde Está O Óleo? O que você tem a dizer sobre o momento de análise? Você acha que o psicanalista atual está preparado para clinicar?
SF – A análise é um momento do sujeito. Ele diz, diz, diz e só depois aquilo vai fazer sentido. Ele pode passar algumas sessões falando a mesma coisa, sem perceber. Pode falar de assuntos diferentes achando que nada se encaixa. O psicanalista nada mais é que alguém que passou por diversas angústias semelhantes ou divergentes a de seu “paciente ou cliente”. Ele, aparentemente, direciona o que o analisando diz. Mas, na verdade, tem a função de um altar. O sujeito que crê na doutrina católica, por exemplo, reza diante de um altar crendo naquela força. É como o suplicante que vai se livrar de sua culpa no divã. O analista é como aquela imagem de Nossa Senhora ou qualquer outro santo. Está ali para dar sentido ao ritual de falar. É bem verdade que, com sua experiência, ele é capaz de pontuar, falar e dar forma às questões que, talvez, o analisando sozinho não pudesse dar conta. Mas o analista também é um ser humano e, por isso, está sujeito a equívocos.

Onde Está O Óleo?Para você, a formação psicanalítica está a altura da de sua época?
SF – O que acho é que a complacência com a mistura de pensamentos é muito grande. Expulsei Jung (Carl Jung) de meu grupo de estudos por conta de sua mistura. Deu no que deu. Veio ele com seus arquétipos. Posso dizer que isso é uma afronta à psicanálise que tanto se dedica à quebra de discurso do sujeito. Criar símbolos que signifiquem o ser humano é o que há de mais patético. As pessoas, que tanto querem respostas prontas e fáceis; que não querem se deparar com sua inquietude, com sua angústia, se contentam facilmente com esta interpretação fácil e cômoda. Arquétipos facilitam o processo os quais cada um tem que fazer por si. Jung não suportou o desamor e a crítica. Teve de criar algo de fácil alcance e compreensão para ser amado. Ele não compreendeu o meu esforço explicitado em “Psicologia de grupo e análise do ego”.

Onde Está O Óleo?Você acha que sua dedicação à criação da psicanálise tem uma repercussão positiva, atualmente?
SF - Não. Acho que a maioria das pessoas ignora o meu grande feito, que foi a descoberta do inconsciente. As pessoas continuam achando que têm controle sobre as coisas e que têm poder de escolha, sem saber que isso é maior que elas. Mal sabem a força do inconsciente e o ignoram completamente. A minha Teoria da Sexualidade também foi solenemente ignorada. Digo isto porque vejo a crença na inocência das crianças. Acho a infância uma fase lúdica e, por isso, muito interessante e fácil de ser contemplada.Como seu superego ainda está em construção, a criança se torna muito mais interessante. Mas acho que é a crença na inocência delas e falta de atitudes enérgicas em virtude dessa crença, que deixam o mundo cada vez mais bobo e inabitável.

Onde Está O Óleo?E quanto ao superego. Como você acha que o mundo contemporâneo encara esse conceito?
SF –
Acho que superego virou uma palavra muito utilizada em mesa de bar. As pessoas não se tocam da grandiosidade desse conceito e o quão pejorativo ele pode ser na vida de alguém. Superego é opressor. E ainda que seja necessário para a formação e educação das pessoas, ele é categoricamente opressor. Virou uma palavra corriqueira, que pessoas que nem estão em análise utilizam. Tenho síncopes a cada vez que ouço essa palavra mal empregada. Gostaria de dizer que estou farto dessa banalização do jargão psicanalítico. Também tenho ojeriza dessa gente “cool” que muito fala, mas pouco se debruça a fazer algo, de fato, importante para suas vidas. E quero dizer que esse “bla, bla, bla” com perguntas pouco consistentes também não me apraz. Fico por aqui.