quinta-feira, 29 de março de 2012

Giro Musical com Laura Zandonadi

O Onde está o óleo? já esteve uma vez na frigideira da Laura Zandonadi. A cantora niteroiense faz nessa sexta-feira, 30 de março,às 18 horas, show do seu primeiro Ep autoral, entitulado “Como eu guardo as poesias”. Intérprete desde os 16 anos, durante quase uma década ela vinha compondo e guardando seus escritos em um caderninho. E como na música, em que as poesias guardadas são lançadas para o mundo, Laura aproveita o seu amadurecimento enquanto cantora utilizando a sua bela voz para transmitir, agora, o que sente.

Seus escritos têm algumas parcerias, entre elas a de Felipe Vellozo, baixista da banda Crombie, que tocará com ela no show ao lado do também Felipe Tauil (percussão). O repertório, que explora a simplicidade nas letras e a suavidade nos arranjos, pode ser conferido no evento Giro Musical, uma organização do Sesc Rio de Janeiro em parceria com o Paiol Cultural.

O Sesc Niterói fica na rua Padre Anchieta, nº 56, Centro!

Laura e Felipe (Vellozo) convidam para o show:

quarta-feira, 28 de março de 2012

Para ser pássaro

Imagem de Vicky Furtado*

Quando cabiam nos dedos a contagem dos meus anos, achava eu que os uniformes eram um ferimento à alma. Ser livre era poder vestir o que quisesse para ir à esquina ou à escola, sem distinção.

Duas mãos já não eram suficientes para dizer aos estranhos que me perguntavam qual era a minha idade cronológica.

Nesta época, liberdade era algo parecido como andar na rua, conhecer lugares, sem hora pra voltar pra casa.

Faltavam apenas alguns dedos para preencher as mãos e os pés. Aí, ganhar asas era algo como sair de casa, perceber o mundo com os meus próprios sentidos, sem influências familiares.

Ser pássaro passou, depois de algum tempo, poder dizer sim ou não de acordo com a minha vontade.

Depois descobri que o nível de passarinheirismo tinha mais a ver em saber dizer sim ou não na hora certa do que ir de acordo com a própria vontade.

E então ser livre era poder dar vazão ao que eu sentia da melhor maneira possível. Foi neste momento que descobri que para ser pássaro era preciso querer sê-lo todos os dias. E que, quase como num exercício de esteira - aquele em que corremos e não saímos do lugar - ser livre era um processo diário e incessante.

Nunca parava e nunca poderia deixar de querer ser.
Pensei: "como é difícil ter asas". Mas não desisti de tê-las.

*Essa e outras ilustrações, além de fotografias, podem ser vistas até o dia 30 de março de 2012 em Porto Alegre, no Espaço Cultural do Hospital São Lucas da Puc-RS

segunda-feira, 26 de março de 2012

Porque se chamavam homens, também se chamavam sonhos

Inspirado na ilustração abaixo, de Vicky Furtado*

"Aliás, a moça me contou uma vez que tinha encontros diários com as suas contradições. Acho que essa frequência nos desencontros ajudava o seu ver oblíquo. Falou por acréscimo que ela não contemplava as paisagens. Que eram as paisagens que a contemplavam. Chegou de ir no oculista. Não era um defeito físico, falou o diagnóstico. Induziu que poderia ser uma disfunção da alma." Manoel de Barros

Era prisioneira de seus sonhos. Em sua mente tudo podia: nuvem de algodão doce, morar num barco, quedas de cachoeira nas esquinas da cidade, asas que pudessem ser colocadas e depois retiradas, uma humanidade menos complicada e menos amarras imaginárias em todas as cabeças.

Havia entre a sua mente e o mundo lá fora uma porta com trinta correntes. Sua falta de habilidade em praticar o sonho o fazia existir apenas ali. Enxergava o que chamam de mundo real em variações de tons de cinza. Tateava esse mesmo mundo áspero, engolia-o amargo, ouvindo sempre seus ruídos barulhentos e desagradáveis.

Bastava uma ideia nova brotar que a superfície da Terra tornava-se macia – quase uma esteira de plástico bolha. Os sons dos carros misturados aos dos pássaros representavam uma melodia deliciosa, enquanto o azul do céu lhe parecia mais bonito com as nuvens entrecortadas que se dava ao prazer de notar.

Era só de um sonho que precisava. Seu alimento mais palatável e saboroso. Tentava retirar, a cada dia, cada uma daquelas correntes. Sua luta era para que seus sonhos invadissem a realidade. E não o contrário.

*Essa e outras ilustrações, além de fotografias, podem ser vistas até o dia 30 de março de 2012 em Porto Alegre, no Espaço Cultural do Hospital São Lucas da PUC-RS

domingo, 25 de março de 2012

Raso, largo, profundo

Esse seria o trecho de Gita que eu usaria para intitular o filme Raul – O início, o fim e o meio. O trabalho de Walter Carvalho retrata a vida daquele que foi a Mosca na Sopa, a Areia da Ampulheta, o Maluco Beleza, entre tantos outros personagens que a Metamorfose Ambulante de Raulzito o permitiu ser.

Desde o início, ainda moleque, Raul tinha um diário de anotações e desenhos onde inventava histórias e sonhava. Ali escreveu que queria ser músico ou locutor. E assim, acreditando no desejo, persistiu. Ainda garoto fundou um fã clube do Elvis e passava horas vendo no cinema o mesmo filme do rock star.

O mais interessante é que o baiano, um dia fascinado e seguidor do estilo propagado por Elvis, caracterizado pela gola da camisa levantada e o cabelo engomado, tempos depois criou ao lado de Paulo Coelho a Sociedade Alternativa, que pregava um livre viver, fora do sistema. Raul viveu tudo de maneira intensa, de modo que quebrou algumas dessas crenças. Suas letras mostram como ele foi vivendo a sua própria metamorfose acreditando com vigor nas “coisas da vida” (como ele mesmo diz em Gita) e as desconstruindo. Talvez tenha sido isso que o permitiu mostrar que as coisas conversam, como fez unindo o rock e o baião numa mesma canção. Quando perguntado se sua música era de protesto, depois de ter usado de seu sarcasmo em Eu também vou reclamar, ele disse: eu faço Raul Seixismo. Sua autenticidade estava em dar forma ao que sentia e em fazer o que queria. Criticava, ironizava, falava de política, de amor, do desencontro e de tudo o que lhe desse na telha, fosse através de solos de guitarra ou ao som do triângulo.

Foi um apaixonado, como todo canceriano (o que deixava claro até nas músicas). Teve cinco mulheres, todas elas – exceto a primeira que parece não ter lidado bem com a explosão de sentimentos que era aquele cara - lembram dele com carinho. Todas elas não deram conta da sua relação com o uso de álcool e drogas. Achei estranho que ninguém tenha relacionado (talvez apenas não tenham mencionado por uma questão moral) esse consumo com a mesma forma que consumia tudo na vida. As músicas, os filmes e as drogas. Ele era um cara que queria ir além, ou melhor, estava sempre além.

Nasci em 89, 2 meses antes dele morrer. Treze anos depois me deparei com um LP de “Maluco Beleza” empoeirado da minha mãe. Eu já tinha ouvido um clássico ou outro de Raulzito na rádio, mas não tinha me causado nada. Nessa época a vitrola lá de casa mal funcionava e os CDs já tomavam conta da estante. Eu fiquei intrigada com aquela figura e fui atrás de suas músicas na internet. Baixei músicas variadas, sem ordem cronológica de disco, o que significa que eu não acompanhei a transformação da Metamorfose Ambulante. Para mim era tudo uma coisa só e foi tomando conta do meu dia a dia, fui ouvindo tudo aquilo cada vez mais fascinada com a capacidade dele dizer as coisas. Quando ouvi Ouro de Tolo pela primeira vez passei uma tarde no repeat. Ali eu sentia que tinha arrumado, enfim, um ídolo atemporal. Tempos depois li o Baú do Raul Revirado, mas sentia que faltava uma homenagem maior a ele, principalmente nas telonas. Vinte e dois anos após sua morte, finalmente saiu. Vale a pena conferir.

sábado, 24 de março de 2012

Mind the gap

Em 24 de março de 2011, inspirado na ilustração abaixo, de Vicky Furtado*

Era o excesso de coisas que provocava nela uma inércia. Leu uma vez que o mal do humano está na falta, na ausência, no buraco a ser preenchido. “Mind the gap”, era a lei proferida por aquele cara do livro. Não tinha gaps, era uma sobra constante de sentimentos e pensamentos. Sua cabeça mais parecia uma escola de samba, num batuque barulhento cruzando a avenida. Sonhos, medos, expectativas, lugares para conhecer, comidas a experimentar, espaços a conquistar. Mas algo parecia criar uma barreira. Um temor sobre por onde começar, o que fazer, como atingir parecia assombrá-la.

Era assim com os amores, com o trabalho, até com a limpeza da casa. Começava arrumando o armário e migrava para lavar a louça. Com as mãos sujas de espuma, pegava a vassoura, varria e com um bolo de poeira amontoado na sala, largava o artefato e ia arrumar a cama. Era assim, perdida. Achava a princípio, que aquilo acontecia porque não suportava arrumar as coisas. No entanto começou a reparar, minimamente, tudo o que fazia.

Estudava alemão pensando que, na verdade, o espanhol poderia ser mais útil, embora preferisse a língua da cerveja. Era apaixonada por um cara, mas não demonstrava nada porque achava que os sinais que ele lhe dava de sentimento recíproco eram poucos para ela investir. Amava a arte, tinha muitas habilidades como desenhista, no entanto, trabalhava com algo que considerava mais seguro financeiramente.

Tudo seu era assim, na trave, nunca marcando um gol. Lia, gostava de filmes, tinha uma lista de lugares a visitar, mas sempre algo acontecia para impedi-la de viver os fatos. Indagava-se porquê. Nunca enxergava como agia, achava que era normal, que o mundo é que não lhe dava chances melhores.

Seu papel de vítima caberia muito bem num jogo daqueles de detetive. Ou num drama épico. Só não cabia na sua vida. Em tudo o que deixava de viver por sua insegurança atroz, insistente, perseverante. Mal sabia a força que tinha, desacreditava de si a cada instante. Num dia desses quaisquer de sua vida rotineira, foi surpreendida pelo cara da banca de jornal:

“A senhora vem aqui todos os dias. Sempre olha as revistas por horas, mas acaba levando o jornal. Porque não compra a revista? Parece que elas te atraem mais”.

Riu para não ser desagradável e voltou para casa pensando no que ele havia dito. Começou a limpar a casa e quase que num exercício obsessivo, deixava cada tarefa pela metade e começava a fazer outra. Deitou na cama e pôs-se a chorar, como se não houvesse solução para o seu sintoma.

*Essa e outras ilustrações, além de fotografias, podem ser vistas até o dia 30 de março de 2012 em Porto Alegre, no Espaço Cultural do Hospital São lucas da Puc-RS

quinta-feira, 22 de março de 2012

Aquela velha angústia

Em 15 de novembro de 2011, inspirado na ilustração abaixo, feita por Vicky Furtado)*

Precisava se livrar de uma tonelada de pensamentos que pesavam sua mente.
Por um momento, fantasiou: sobre duas rodas podia dar a volta no país, quem sabe no mundo. Adequando a lentidão de sua compreensão ao modo de fazer a viagem, as duas rodas não possuíam motor. Não era uma motocicleta. Sua viagem era mais modesta que a do revolucionário Che.

Idealizou realizar o árduo exercício. Fantasiou, buscou em quem se inspirar. Acordou num domingo, subiu na bicicleta e pedalou dois bairros a diante. Parou num bar, pediu uma garrafa de cerveja. Bebeu. Conversou consigo. Não era sua melhor ouvinte, mas certamente aquele "diálogo" entre a sua constituição e a sua embriaguez era, no mínimo, um regozijo.

Lembrou das palavras de um outro ouvinte. Parou e pensou. Sua embriaguez permitia uma risada mais franca e ao mesmo tempo zombeteira. Ria com escárnio de si, talvez por ver - ainda que de modo cíclope - o quanto era boçal. Pagou a cerveja, pedalou em zigue-zague. Sentiu, com vento cortante no seu rosto, a adrenalina daquela aventura, e agradeceu por não haver blitz aos sem motor.

Passou um tempo. As duas rodas ficaram ali, jogadas em um canto da garagem. Buscou outras aventuras que pudessem suprir a angústia de viver. Esteve em festas, visitou as sensações mais intensas de embriaguez. Viu gente. Mas pouco se envolveu. A uma pessoa apenas mostrou um milímetro de sua fragilidade que escondia atrás de seu escárnio.

Rir de si parecia-lhe honesto e sublime. Mas não media, apenas intuía em raros segundos de lucidez, o quanto esse riso vinha carregado de censura e preconceito em cima de suas ações.

E se embriagava para ter coragem. A ressaca se dava em forma de chicote. Batia na pele e sangrava, num autoflagelo disfarçado de uma simples crítica.

Era a culpa por fazer aquilo que queria, mas não conseguia do jeito que considerava “certo”. Aquela busca por fazer as coisas de um modo que fosse bom, embora zombasse dos conceitos maniqueístas, causavam um consumo de horas e horas de brigas consigo mesma. Se sentia mal por fazer – em sua cabeça - tudo de modo exagerado, destrambelhado, errôneo.

Quem disse que o era? Era o chicote que dilacerava a carne. E não via saída. E havia saída. Do que se queria sair? Para onde fugir? Mas nunca vinha à sua cabeça, o porquê de querer fugir. Não se sabia. Não sabia. Não era sábia. Nada sabia da vida. Era o que pensava, num pessimismo incutido anos e anos, difícil para qualquer analista arrancar a estrutura inicial.

Era a certeza, e não a dúvida, como muitos apontavam, que a desconcertava. Queria entender – todos os dias - aquela falta de sossego. Encarou um espelho por longo tempo, não se sabe dizer por quanto, como se ele fosse capaz de lhe dar alguma resposta.

Viu transformações em seu rosto, se censurou. Pensou na quantidade de horas de sua vida em que passara tentando entender do que se tratava aquele nó no seu sossego, aquele aperto que mais parecia um alarme disparado dentro do peito sem hora para o controlador desarmá-lo.

Era a angústia, aquela velha e misteriosa que não cessava. Dormiu em pé em frente ao espelho. Acordou sem respostas.

*Essa e outras ilustrações, além de fotografias, podem ser vistas até o dia 30 de março de 2012 em Porto Alegre, no Espaço Cultural do Hospital São Lucas da Puc-RS

terça-feira, 20 de março de 2012

até o talo

calo, calo, calo
ops,
tá cheio até o talo.

falo, falo, falo,
se não me engasgo,
me entalo.

numa rima simples
faço - no ato -
o trato

de não cometer o delito:
deixar o dito pelo não dito

por isso teço
num quase aranha:
meu peito é aflito

é o que sinto,
- não minto -
num lamento quase choramingo.

todas as tentativas
de aumentar o tom, voz ativa
me vem na mente uma sina
de não encaixá-la na rima.

domingo, 18 de março de 2012

Meus discos e livros... e nada mais!

“Encher-se daquilo que produz beleza em seu interior."

Relendo essa frase que anotei como um lembrete em uma agenda antiga, fiz uma viagem em minha mente sobre os apetrechos que fui adquirindo pela vida e foram me constituindo.

Tão gostoso lembrar das músicas, dos livros, dos bilhetes, das pessoas, das conversas. Resolvi então resgatar alguns desses para entender um pouco o meu percurso. Imediatamente me veio à cabeça um disco que fez parte de uma fase muito boa da minha vida.

Vô Imbolá, do Zeca Baleiro, influenciou muito o meu modo de ver o mundo, e principalmente, acentuou o meu amor por quem tem como matéria-prima de trabalho a palavra.

Nesse mundo de hiperlink em que vivemos, onde uma coisa puxa a outra instantaneamente, me recordei dessa versão de uma das minhas músicas favoritas do disco: “Boi de haxixe", cantada por Ceumar.

Essa cantora, que tem uma voz linda e uma poesia singular de cantar a vida, me foi apresentada por Laura Zandonadi, pessoinha com voz tão bela quanto a de Ceumar.

A segunda favorita, “Maldição”, segue interpretada pelo próprio Zeca.



quarta-feira, 14 de março de 2012

Lobo da estepe do Flamengo

Chego na portaria do prédio esbaforida e, por sorte, tiro os costumeiros fones dos meus ouvidos. Sou imediatamente fisgada por uma melodia bonita vinda de uma janela no prédio ao lado do meu. Levo alguns segundos para me certificar de que se trata de um violino. Aquele conjunto de sons vai desenhando uma música triste, pura expressão de melancolia.

Fico ali estagnada tentando apurar de qual janela exatamente vem o som. Olho para uma que possui uma cortina clara, deixando transparecer uma meia luz. Decido que é aquela. Talvez por um romantismo em acreditar que aquele cenário combinasse perfeitamente com a história que envolvia o violino e a melodia triste.

Perguntei a Marcelo, porteiro camarada, se ele sabia quem tocava aquele som. Ele retrucou que não tinha ideia, mas acrescentou que aquelas notas vinham do mesmo lugar de onde se ouvia incessantemente o bater em uma máquina datilográfica. “A pessoa não para nem domingo”, ele me comunicou.

Subi no elevador com um mistério. Quem estaria ali, ao meu lado, na janela colada à minha tocando um violino e escrevendo numa Olivetti? Seria um homem? Ou uma mulher? Que idade teria? Viveria esta pessoa da escrita? Ou quem sabe fosse musicista? Talvez apenas um aprendiz de ambos os ofícios...

Aquelas questões passaram entre o instante em que cheguei ao primeiro andar, desci do elevador e abri a porta de casa. O som permaneceu por mais alguns instantes, só que não mais harmonioso quanto há minutos. A mim parecia que o meu vizinho ou vizinha – ainda desconhecido – tentava iniciar outra melodia e havia se perdido. De repente ficou um silêncio, e na medida em que nada acontecia, a minha mente tratava de imaginar mil respostas para as perguntas as quais me fiz no elevador. Imaginei ali ao meu lado o próprio Lobo da Estepe, personagem clássico do alemão Hermann Hesse. Na mesma hora me lembrei de Harry Haller, aquele ser que vivia em um quarto alugado envolto a livros de todos os tipos e se embriagava com vinho, saindo pela cidade para viver casos como o que viveu com Hermínia em contraponto com a vida pacata e tranquila que tanto aspirava, mas não conseguia se concentrar. Aquele ser solitário que vivia à procura daquilo que todos os seres sensíveis buscam, mas nunca encontram: um sentido para a existência.

O som do violino retornou, agora com uma melodia harmoniosa. Parecia que o meu vizinho tinha optado por tocar outra música. Entre um engasgo ou outro o som fluía, ainda melancólico. Fiquei alguns minutos criando uma imagem para aquela criatura. Quando as notas pararam novamente, me dei conta de toda a fábula que criei em instantes. Um Lobo da Estepe ao meu lado? Ri da minha crença, num quase sarcasmo de mim mesma. Parei por instantes e detectei a crueldade do meu escárnio. Não poderia então existir uma alma como essa descrita por Hesse vagando, ou morando, ali? Foi bom pensar que sim. Dormirei e acordarei pelos próximos dias acreditando que Harry Haller saiu dos livros e que eu tenho o privilégio de tê-lo perto de mim fazendo seus solos e batendo seus textos. O resto fica por conta da minha imaginação.

terça-feira, 13 de março de 2012

Quando se relê...

vê-se que nada prestou.

Ser poeta
é a meta
de quem não sabe falar.

Mas não se faz poesia
com razão ou sentido.

O afeto,
seleto
é o que faz a poesia
- tão escorregadia -
nascer.

Falta muito para ela acontecer.

domingo, 11 de março de 2012

Da série: respostas a Drummond.

Embriaguez - literal e em doses cavalares - de pretensão.


C.D.A. em Poesia errante (pag 30).

O Charadista

Ama as palavras cruzadas
e também os logogrifos,
pois a poesia, bem sabes,
é emoção filtrada em signos
de grifos e de hipogrifos,
e te divertes buscando
a chave obscura do verbo,
a chave esconsa do amor,
a chave enigma - do ser.

Resposta

O Detetive

Ama enigmas
mistérios e véus.
que graça teria sua vida
sem os crimes passionais,
os encontros casuais,
os casos extraconjugais,
a paixão fugaz,
a conquista sagaz,
e a falta que faz
- aquela produzida
pelo simples existir?

C.D.A. em Poesia errante (pag 54)

Livro

Boitempo, ou seja, aquelo vago boi
imóvel na planura do passado,
a ruminar o verde-azul-dourado
silêncio do que é de quanto foi.

Resposta

Livre

Torna-se dono
do que sente
sem controle, sem rédea:
o poder é doente.

C.D.A. em Poesia errante (pag 55)

Merci, merci, merci

Merci, merci, merci
Estou empapelado!
Deixo, feliz, aqui,
o meu muito-obrigado
a ti.

Resposta

De rien, de rien, de rien

Rien de rien,
De rien.
Foi sincero.
A gratidão
é só questão de educação.

C.D.A. em Poesia errante (pag 57)

O meu papel

O meu papel, agora bem timbrado,
dá-me status muitíssimo bacana.
De cada folha salta um obrigado
e de cada envelope, um alto hosana.

Resposta

O seu papel

O seu papel sem nenhum registro
sem nenhum valor aparente
é o seu troféu - insisto -
de quem vive, de quem sente.

C.D.A. em Poesia errante (pags 58, 59, 60 e 61- na série O trabalho em verso)

Duas respostas

Mascate

Busca a cada viagem
vender aquilo que carrega
numa engrenagem
a qual nunca se entrega.

Amante

À espera de um espaço de tempo
se desilude a cada contratempo
daquele que por um instante
acreditou ser seu.

C.D.A. em Poesia errante (pag 63)

Ramo de lucidez

Ramo de lucidez
e ramo de carinho:
com esses dois verdores,
ornamentar o ninho
onde a forma nascente
vai tornar-se destino.

Resposta

Um ramo de lucidez num pé de loucura

Árvore de loucura
galhos de espinhos
com esses dois companheiros
deitar na sofrida
forma crescida
que se chama vida.

C.D.A. em Poesia errante (pag 69)

Amanhecer

Amanhecer: o mais antigo
sinal de vida sobre a Terra.
Amanhecer: ainda o mais novo
sinal de vida sobre a Terra.
Amanhecer e vida humana
se entrelaçam na mesma luz.

Resposta

Anoitecer

Anoitecer: o mais antigo
sinal de descanso na Terra.
O momento em que podemos dormir.
Apagar por instantes os sinais
de vida sobre a Terra.
O momento em que vamos para os sonhos
viver apenas aquilo que desejamos.
Os melhores e os piores desejos.

sexta-feira, 2 de março de 2012