Minha cabeça ferve depois de um dia insano de bombardeio de
perguntas no trabalho. Dados, números, respostas, justificativas. Minha mente turva quer descansar. Respiro fundo, esfrego os olhos que forçam a barra para
fechar e lubrificar - onde está o óleo, agora das retinas? Penso na sucessão de acontecimentos dos últimos meses, dias,
horas. E o que me vem à memória como sinônimo de alegria é aquilo
que relaciono com espontaneidade. A aridez da rotina e do vício no celular quase que nos rouba
a oportunidade diária de viver o espontâneo. Um sorriso brota no meu rosto quando me lembro
que na semana passada, já era tarde da noite, e no ônibus para casa eu relembrava
uma canção.
A letra me faltou, recorri ao Google. Li e cantarolei. Não olhei para os lados, nem dei play. Apenas cantei
seguindo a letra. Não muito alto. Quando parei - a endorfina saltava como após a aula de ioga
- a moça ao lado me disse: que linda sua inspiração, estava cantando bonito.
Ri sem graça e me desculpei por não ter me dado conta e quem
sabe ter atrapalhado o silêncio dela.
E assim iniciamos um bate-papo, o suficiente para eu saber
que ela morou 10 anos na Alemanha, suas intenções políticas, o que pensa sobre a polícia, educação - lá no Velho
Continente e aqui - e mais um par de assuntos.
Ela mesma me lembrou do quanto ficamos ensimesmados (tenho
quase um tesão nesta palavra de tão única e certeira que ela é) em nossos aparelhos móveis - essas extensões corpóreas que
nos prendem quase toda a atenção - e quão pouco espaço damos a esta conversa no
ônibus.
Guardei aquele respiro e aquela sensação de bem-estar na
minha memória. No sábado seguinte, no ônibus novamente, eu lia meu livro
durante o percurso, quando decidi larga-lo e entrar na conversa de três
adolescentes que falavam sobre uma bobagem qualquer.
Rimos. Eles não se sentiram desconfortáveis com a minha
brincadeira. Segui. No metrô, na continuação do caminho para o meu destino, já
não abri nem o livro, nem peguei o celular.
Desde a estação Butantã, apenas prestei atenção. Havia uma moça comendo uma fruta.
Éramos somente eu e ela a não mirar nem o celular, nem outro
objeto que tomasse nossa atenção.
Um vagão inteiro distraído.
Flertamos.
Desviamos os olhares.
Flertamos novamente.
Eu quis rir daquele fato inusitado. Acho que nunca havia
flertado no metrô de São Paulo.
Observar alguém comer uma fruta e flertar com ela no metrô
me causou estranheza e novamente uma sensação de endorfina liberada. Ela desceu na Paulista.
Andei mais uma estação e segui até o meu destino relembrando
os pequenos prazeres no ônibus e do metrô e elucubrando sobre o quanto disponibilizamos
de tempo e oportunidade para o espontâneo na árida rotina dessas capitais.
Quanto cabe em nossas rotinas uma mensagem espontânea com um
"está fazendo o que? quer fazer algo agora?". Quanto cabe nos nossos dias desvios de percursos ou de
atenção daquilo a que estamos programados a fazer?