quarta-feira, 11 de novembro de 2009

As benesses do apagão


Ontem, resolvi que ia ao teatro ver o Homem da Tarja Preta. O texto, do psicanalista Contardo Calligaris, é dirigido por Bete Coelho e tem a interpretação do ator baiano Ricardo Bittencourt. Enfrentei uma chuva “daquelas” para ir da Gávea ao Leblon. Cheguei ao teatro ensopada e encontrei meus amigos com quem havia marcado. Teatro vazio, como era de se esperar em uma terça-feira. A peça começou. Os três minutos iniciais (se é que deu pra calcular) me pareceram angustiantes. Uma sequência de ações sem palavras foi ocorrendo. Aquele silêncio já estava se tornando insuportavelmente incômodo, quando o personagem começou a falar. Pausa para isso. Andamos tão a mil, que suportar 3 minutos ou um pouco mais de contemplação de ações simples (como um entra e sai de cena, e uma hesitação particular) se torna sufocante. Não sei qual a intenção (se é que há intenção) de nos deixar ausentes de som nesse momento inicial, mas o fato é que pra mim funcionou como um sufoco e isso foi fundamental pra que eu mergulhasse na história.
A partir da primeira palavra proferida, foi impressionante a maneira como consegui me concentrar. Não dispersei nem um segundo, o que nem sempre é comum comigo.
Numa peça com um número maior de atores há o trabalho das marcações, posicionamento, saber a deixa, e se errarem a deixa, ter que improvisar em cima do que foi falado. Mas há um contato direto com outra pessoa, o ator tem para quem olhar. Já no monólogo, eu imagino que deva ser infinitamente mais difícil estar sozinho no palco e ter que encarar “olhos no olhos” a platéia. E esse cara faz isso muito bem. Tem uma segurança admirável.
A peça ia muito bem, quando de repente houve um blackout. Começou a tocar um despertador. Achamos que era efeito cênico. Passaram quase dois minutos, o ator na mesma posição disse: “Faltou luz mesmo, não faz parte da peça”. Começamos a rir. Um funcionário do Teatro do Leblon abriu a porta e comunicou que o problema era em toda a rua. Faltavam apenas três minutos para finalizar a peça, mas como estávamos no breu, não enxergávamos quase nada. Além disso, a cena final precisava de uma música e não havia como tocá-la. Foi nesse momento que aconteceu uma coisa muito gostosa: tivemos a oportunidade de ter um bate-papo com Ricardo Bittencourt. Ele falou da diferença entre o público carioca e o paulista. Em São Paulo, O Homem da Tarja Preta ficou em cartaz por seis meses com sessões lotadas. Depois viajou pelo interior do estado para ser apresentada duas vezes e o número de sessões se quadruplicou. Aqui no Rio, as salas estão sempre vazias. Sugerimos que era por conta do dia, terças e quartas, bem no início da semana. Ricardo respondeu que não sabia se era devido a isso ou se era pela cultura do humor do carioca.
De fato. Após ele falar isso, me lembrei de que ontem mesmo, após sair do trabalho, passei pelo Vivo Rio, e lá havia uma fila com um número considerável de pessoas para comprar ingressos pro Z.É. Somando-se a isso, Bittencourt falou sobre a diferente reação ao espetáculo entre esses dois públicos. Enquanto os paulistas encaram o texto como uma comédia, aqui no Rio tem o tom de tragédia. Ele analisa como se o carioca levasse pro íntimo, pro pessoal. Em uma cena, ele dá um endereço ali mesmo do Leblon e lá do palco tem a sensação de que todos tomam pra si, se identificam. Não sei qual o endereço ele utiliza em São Paulo, mas certamente a peça não é em algum lugar tão pequeno, onde a frequência seja tão bairrista. Em São Paulo os risos são constantes, certeiros, ele já sabe as pausas certas para ouvi-los e depois, seguir. E aqui, os risos são espaçados, imprevisíveis, deslocados. Perguntei a ele se tinha um tom de desespero por parte do carioca, ele não soube responder. Esse clima de enigma foi fascinante.
A cultura do riso no Rio é, de fato, muito forte. Os “stand-up comedies” estão sempre lotados, ficam bastante tempo em cartaz... O que há de mal nisso? Creio que nada. Chamar de teatro eu acho pesado, já que me parece mais um show, um talk-show. Já fui algumas vezes no Z.É., e é sim divertido. Não sinto mais vontade de voltar porque satura. Tem o seu valor, é um jogo rápido, os atores têm que ser ágeis, hábeis, inteligentes, mas nós, espectadores, temos é que ser apenas fugazes. Rimos, vamos embora. Humor é ótimo, seja o fino ou o mais escrachado. Você tende a sair sempre leve, relaxado. Mas porque optar só por isso? É tão difícil assim querer ir ver algo diferente? Fico pensando na tão falada hospitalidade do carioca. Que hospitalidade é essa que não consegue receber bem um espetáculo paulistano (vejam bem, aqui falo desta peça, não do geral)? É o famoso chopp repetido no bar, aquele “a gente se vê”, “passa lá em casa” e fica tudo por isso mesmo. Há uma dificuldade imensa de assumir a solidão, que existe.
Bom, acabei levantando muitas coisas. Sobre a peça mesmo, só falarei quando vir o final, já que ganhei ingressos para voltar. Mas adorei o apagão que me permitiu esse contato com as impressões do ator e me levou a pensar nessas coisas.

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