sexta-feira, 6 de julho de 2012

Sam$ara - A Rebelião dos Exus


Augusto Carazza trabalhava em uma empresa de comunicação, onde tinha a confiança de seu chefe e um cargo que lhe pagava um bom salário. Neste mesmo lugar, constatou a competição ‘econômica’ sem sentido entre as pessoas (ele estava incluído nesta disputa), a briga entre família (tratava-se de uma empresa familiar) e, como já tinha iniciado seu processo de análise, viu que aquilo tudo não fazia mais sentido em sua vida. As confusões e as “kizombas”, como ele mesmo chama, só serviram para reinventar o seu modo de viver. As camisas e os sapatos sociais deram lugar ao chinelo e ao boné; o ambiente social com muitas pessoas foi abandonado por uma vida em companhia de bons livros. E, assim, pôde transformar o seu tesão pela literatura, naquilo que lhe dava mais prazer: escrever. Não foi uma tarefa fácil: “houve dias que não saía uma página sequer”. Mas a sofisticação do seu prazer resultou em Sam$ara - A Rebelião dos Exus, livro que discute o mundo contemporâneo (questões que têm e não têm relevância neste contexto) e, com uma pegada futurista, aponta para o que teremos no decorrer deste século e no próximo. Com uma narrativa bem-humorada, mesmo abordando a violência de forma explícita, que beira a amoralidade; consegue atrair o leitor e dar o seu recado. Confira a entrevista abaixo:

1) Onde Está o Óleo? - O livro trata, entre diversas questões, sobre o que você chama de "Rebelião dos Exus". Do que se trata essa rebelião e o que propõe quando toca neste assunto?

Augusto Carazza - Há um caminho para se chegar a esta ‘rebelião’ e não é um caminho fácil. Em $am$ara, Akira jogou o filho pela janela, sem demonstrar arrependimento e, ainda disse que foi a criança que desejou a própria morte. A mãe, Samantha, não se importou, a não ser, claro, porque perdeu a pensão alimentícia. Sam tratava o filho como mercadoria e há que se perguntar se todo mundo não faz o mesmo. Afinal, numa empresa você ganha uma série de benefícios e desperta compaixão dos outros; e as camadas populares se reproduzem para ganhar vantagens de governo assistencialista. É a vida como ela é! É bom que se diga que toda análise é financeira. No slogan de Carrossel, Silvio Santos declara: a novela que vai unir a família brasileira. Unida para dar lucro ao patrão SS! Podemos dizer que a família se trata de uma instituição que NUNCA deu certo do ponto de vista da saúde mental, mas, enquanto gerar grana, será mantida: dia das mães, pais, crianças, Natal... Isso movimenta o capital. Sem contar que a maioria das empresas são estruturadas como família – os colegas como irmãos, disputando atenção do chefe/pai. É a mesma ladainha! Um horror! A Rebelião tem a ver com assumir o desejo, a potência criadora e destrutiva do inconsciente. Poderia ser chamada de ‘Rebelião do Inconsciente’, já que tudo vem de lá. É para se assumir o tesão pra valer e, em muitos casos, ele não está de acordo com o ‘programa’ da família, sobretudo o da classe média, a mais neurótica, a que vive de aparências, preocupada com a opinião alheia; competição estúpida!


Tenho um amigo que está chafurdado na cocaína (não é um uso esporádico, é todo dia, a toda hora) porque a mãe o proibiu de ser jogador de futebol, por considerar o esporte coisa para pobre. O rapaz não soube revirar, mandar a mãe à merda e ir atrás do que queria fazer. Como resultado, o ódio está se voltando contra ele, em forma de destruição. Então, nos três primeiros capítulos, eu metralho, na linguagem de MDMagno (psicanalista brasileiro que foi analisando de Jacques Lacan), os Impérios do Pai e Filho, ratificando que a natureza humana é a perversão. Metralho para afirmar que nossa condição é o ‘viver não é preciso, navegar é preciso’, de Pessoa. Não adianta ficar chocado com a retalhadora Matsunaga (caso recente na mídia), pois qualquer um pode fazer o mesmo. Repare que o cara deu a arma de presente pra ela e, com esta arma, recebeu um tiro. Ora, do ponto de vista jurídico, ela é assassina, mas, do ponto de vista psicanalítico, essa tese não se sustenta... É a tese de Akira! A Rebelião não é apenas assumir o desejo no nosso dia a dia, mas, também, saber lidar com o nosso ódio e o do outro.


2. OEOO? - Akira possui um comportamento livre de culpa e a serviço do prazer. O que ele tem de você e que representa sobre os seres humanos? Qual o papel desse personagem na Rebelião dos Exus?

AC - Engraçado, outro dia um amigo me chamou de ‘menino enigmático’, porque ficou sabendo de diferentes personagens que exerço no dia a dia. E olha que não são tantos... Mas como ele está fixado na ética da classe média, na noção de uma única identidade, ficou levemente espantado, disse que desejava me estudar e vai ler Sam$ara para entender minha cabeça. Ele vai se deparar com Akira que procura transar com diferentes programas, sintomas: é das exatas, é das humanas, trepa com homem, mulher, travesti; é cosmopolita, high-tech; mas se enfia no meio da Floresta Amazônica quando bem entende, se bobear pega até o curupira! Agora, Akira está além de mim, está mais adiante, justamente porque não tem culpa (alguma), eu ainda tenho as minhas que preciso dar conta na análise. Então, ele é uma espécie de ideal, mas sem ser opressivo... Akira é um lúcido, um homem do século XXI, vem para reafirmar nossas diversas facetas, somos vários e, claro, capazes de atitudes extremas, à rememoração de nossa violência originária. O universo não chegou aqui sem ela... Veja que a violência de Akira, assumida, sem denegação, deu origem à epidemia (trecho do livro em que os personagens repetem a ação de Akira: jogar o filho para janela).  Mas é bom que se diga que ela só aconteceu, porque encontrou um terreno fértil. Akira não fez nenhum tipo de sugestão, nos moldes dos grandes líderes, para que as pessoas o seguissem. Elas fizeram por livre e espontânea vontade, mas com aparência de orquestração. Olhando de fora até parece um evento coordenado, mas não foi... Este fenômeno é chamado pela animação japonesa ‘Ghost in the Shell’, de stand alone complex, o complexo de ‘estar ou agir sozinho’, mas com aparência de coletividade. É o que a psicanálise chamaria de ‘lucidez’, não à toa a obra fala sobre o ‘advento dos Lúcidos’... Nada de pai, nada de filho...   

3. OEOO? - Você criou personagens que têm uma forte relação com o desejo. Até brinca com a questão de robotizar as funções "que ninguém gosta de fazer" e assim facilita a vida deixando o caminho livre para as funções prazerosas. O que você propõe com isso?

AC - Estas profissões braçais têm prazo de validade e cada um vai ter que se virar para dar conta da pulsão. Outro dia vi, em uma entrevista concedida a Danilo Gentili, Ratinho dizer que nunca trabalhou, porque trabalhar é fazer o que você não gosta. Ele está certo, pois, se procurarmos a etimologia da palavra ‘trabalho’, descobriremos o real significado: instrumento de tortura. Trabalhar é uma tortura e só fazemos porque precisamos de dinheiro, pagar contas. Agora, a mera sobrevivência é muito pouco, se ficarmos só nisso, nos igualamos a uma lacraia ou a qualquer outro animal. O que se vê no dia a dia é que as pessoas, independente de classe social, estão de saco cheio deste sistema. Isso não quer dizer que elas desejam sair do lamaçal, afinal dá trabalho sustentar a ‘rebelião’ a as resistências internas são muitas, as chamadas forças recalcantes.  A única saída possível é o investimento no desejo até porque ele pode gerar dinheiro. Se há uma coisa hierarquicamente superior ao capital, é o tesão! Fazer algo por prazer e não para agradar a família, a cultura, ser apenas uma peça do sistema de produção ocidental... Coisa difícil, porque como somos putas, um punhado de dinheiro nos seduz facilmente e, num piscar de olhos, nos tornamos burocratas, mas ganhando, por exemplo, R$ 40 mil, o que apazigua, de certa forma, o inconsciente. Mas ele logo se rebela e estas pessoas logo se viciam em anti-depressivos e demais drogas. Ou então se matam, como o Sr Matsunaga...

4. OEOO? - As animações japonesas marcam presença no seu texto. O que mais colabora para a construção da sua narrativa? O que você gosta de ler?

AC - A psicanálise, leia-se Freud e MDMagno, me ajuda muito. E escritores que retratam o contemporâneo de forma precisa como Michel Houellebecq, Vila-Matas, Gonçalo Tavares. Eles têm uma escrita objetiva, sem rodeios, vertical... É o que procuro quando escrevo. Nestes dias, estou lendo ‘Solar’, de Ian McEwan, um autor britânico que eu não tinha conhecimento. Foi sugestão de um amigo, li a sinopse e me interessei. Ironiza o discurso do ecologicamente correto e das tais mudanças climáticas, ocasionadas pela ação humana, uma bobagem. O personagem principal, Michael Beard, que está mais indiferente às coisas do mundo, encontra-se atordoado, entre outros motivos, por não entender como sua quinta mulher pode ter um caso com um pedreiro. Trocá-lo por um pedreiro... Nesta hora, todo seu status acadêmico (ele tem um Nobel em Física) vai por água abaixo, não adianta de nada. É a pulsão e suas vicissitudes...

5. OEOO? - As questões do corpo também são colocadas de uma forma diferente pro você. Qual é a proposta?

AC- Na verdade, não é uma proposta, é o que está por vir no XXI e XXII. O corpo biológico, esta carcaça que nos constitui, não tem mais serventia alguma diante das novas tecnologias que estão surgindo. Não faz mais sentido ficar preso num único corpo, extremamente frágil por sinal. Ele não comporta o cérebro que, nele, habita. É um hardware que não suporta o software, daí as inúmeras próteses que não param de emergir. As pessoas no dia a dia demonstram sua insatisfação: trocam boca, nariz, testa, bunda, peito, barriga, panturrilha, cortam o pau, mudam de cor como Michael Jackson... Trepar é uma forma de ser o outro, este passa a ser eu, porque o cérebro humano incorpora tudo que vê pela frente... Toco num assunto, chamado por Ray Kurzweil, de Singularidade, a união do biológico ao mecânico, o trans-humanismo, o fim da Morte como conhecemos... Mas isto não significa Nirvana: resolveu-se o problema da Morte e, beleza, eis a completude! Não é isso... Em $am$ara, chega um momento que Samantha vira pra Mambo Jack e diz: ‘sinto falta de algo, acho que quero me ‘desligar’!’. Vicky Vaporú fica puta com a declaração da amiga, mas Sam revela uma questão importante. O grande problema da espécie (e também solução, já que a impulsiona a criar) é a inexistência de Nirvana, a situação perfeita; neste sentido, o ‘golpe da cobra’ é saber lidar com as assimetrias/ frustrações de Sam$ara, transformá-las em prazer, por que não? Não é uma tarefa fácil.

6. OEOO? - Após narrar uma história com um viés de desejo e, ao mesmo tempo, mostrando que o ser humano é violento, você afirma que o apocalipse fica pra depois. É possível reinventar a vida, o prazer?

AC - Primeiro a gente precisa aceitar que vida é guerra e não há como fugir disso. É uma kizomba! Em Sam$ara isso fica bem explícito: empresas querem destruir os Estados, que desejam diminuir os lucros das máfias e estas querem acabar com todos... Sem parâmetros, como viver em sociedade? Não há verdade alguma, é tudo questão de argumentação. E temos que considerar que é tudo uma coisa só, o monismo da pulsão que quer sua satisfação. O dinheiro é o símbolo material deste movimento... Só há um lado na Vida. As oposições, que pintam por aí, não passam de jogo político, e são momentâneas. Desejo e violência estão interligados, um não vive sem o outro. Precisei aplicar violência para escrever este livro, caso contrário não saía, porque somos vagabundos, nossa tendência é a inércia...  Diante deste cenário, que não é o apocalipse, nada de fim de mundo. É possível tornar a vida mais leve e mais prazerosa. Quando a gente lê um Manoel de Barros, a gente vê que é possível. Cabe a cada um (processo individual) descobrir o modo, ou seja, não há fórmula, nem garantias, e se alguém oferecer esta tal ‘fórmula’, taque esta pessoa pela janela, porque ela está te sacaneando... Saravá!

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