quarta-feira, 14 de março de 2012

Lobo da estepe do Flamengo

Chego na portaria do prédio esbaforida e, por sorte, tiro os costumeiros fones dos meus ouvidos. Sou imediatamente fisgada por uma melodia bonita vinda de uma janela no prédio ao lado do meu. Levo alguns segundos para me certificar de que se trata de um violino. Aquele conjunto de sons vai desenhando uma música triste, pura expressão de melancolia.

Fico ali estagnada tentando apurar de qual janela exatamente vem o som. Olho para uma que possui uma cortina clara, deixando transparecer uma meia luz. Decido que é aquela. Talvez por um romantismo em acreditar que aquele cenário combinasse perfeitamente com a história que envolvia o violino e a melodia triste.

Perguntei a Marcelo, porteiro camarada, se ele sabia quem tocava aquele som. Ele retrucou que não tinha ideia, mas acrescentou que aquelas notas vinham do mesmo lugar de onde se ouvia incessantemente o bater em uma máquina datilográfica. “A pessoa não para nem domingo”, ele me comunicou.

Subi no elevador com um mistério. Quem estaria ali, ao meu lado, na janela colada à minha tocando um violino e escrevendo numa Olivetti? Seria um homem? Ou uma mulher? Que idade teria? Viveria esta pessoa da escrita? Ou quem sabe fosse musicista? Talvez apenas um aprendiz de ambos os ofícios...

Aquelas questões passaram entre o instante em que cheguei ao primeiro andar, desci do elevador e abri a porta de casa. O som permaneceu por mais alguns instantes, só que não mais harmonioso quanto há minutos. A mim parecia que o meu vizinho ou vizinha – ainda desconhecido – tentava iniciar outra melodia e havia se perdido. De repente ficou um silêncio, e na medida em que nada acontecia, a minha mente tratava de imaginar mil respostas para as perguntas as quais me fiz no elevador. Imaginei ali ao meu lado o próprio Lobo da Estepe, personagem clássico do alemão Hermann Hesse. Na mesma hora me lembrei de Harry Haller, aquele ser que vivia em um quarto alugado envolto a livros de todos os tipos e se embriagava com vinho, saindo pela cidade para viver casos como o que viveu com Hermínia em contraponto com a vida pacata e tranquila que tanto aspirava, mas não conseguia se concentrar. Aquele ser solitário que vivia à procura daquilo que todos os seres sensíveis buscam, mas nunca encontram: um sentido para a existência.

O som do violino retornou, agora com uma melodia harmoniosa. Parecia que o meu vizinho tinha optado por tocar outra música. Entre um engasgo ou outro o som fluía, ainda melancólico. Fiquei alguns minutos criando uma imagem para aquela criatura. Quando as notas pararam novamente, me dei conta de toda a fábula que criei em instantes. Um Lobo da Estepe ao meu lado? Ri da minha crença, num quase sarcasmo de mim mesma. Parei por instantes e detectei a crueldade do meu escárnio. Não poderia então existir uma alma como essa descrita por Hesse vagando, ou morando, ali? Foi bom pensar que sim. Dormirei e acordarei pelos próximos dias acreditando que Harry Haller saiu dos livros e que eu tenho o privilégio de tê-lo perto de mim fazendo seus solos e batendo seus textos. O resto fica por conta da minha imaginação.

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