segunda-feira, 26 de março de 2012

Porque se chamavam homens, também se chamavam sonhos

Inspirado na ilustração abaixo, de Vicky Furtado*

"Aliás, a moça me contou uma vez que tinha encontros diários com as suas contradições. Acho que essa frequência nos desencontros ajudava o seu ver oblíquo. Falou por acréscimo que ela não contemplava as paisagens. Que eram as paisagens que a contemplavam. Chegou de ir no oculista. Não era um defeito físico, falou o diagnóstico. Induziu que poderia ser uma disfunção da alma." Manoel de Barros

Era prisioneira de seus sonhos. Em sua mente tudo podia: nuvem de algodão doce, morar num barco, quedas de cachoeira nas esquinas da cidade, asas que pudessem ser colocadas e depois retiradas, uma humanidade menos complicada e menos amarras imaginárias em todas as cabeças.

Havia entre a sua mente e o mundo lá fora uma porta com trinta correntes. Sua falta de habilidade em praticar o sonho o fazia existir apenas ali. Enxergava o que chamam de mundo real em variações de tons de cinza. Tateava esse mesmo mundo áspero, engolia-o amargo, ouvindo sempre seus ruídos barulhentos e desagradáveis.

Bastava uma ideia nova brotar que a superfície da Terra tornava-se macia – quase uma esteira de plástico bolha. Os sons dos carros misturados aos dos pássaros representavam uma melodia deliciosa, enquanto o azul do céu lhe parecia mais bonito com as nuvens entrecortadas que se dava ao prazer de notar.

Era só de um sonho que precisava. Seu alimento mais palatável e saboroso. Tentava retirar, a cada dia, cada uma daquelas correntes. Sua luta era para que seus sonhos invadissem a realidade. E não o contrário.

*Essa e outras ilustrações, além de fotografias, podem ser vistas até o dia 30 de março de 2012 em Porto Alegre, no Espaço Cultural do Hospital São Lucas da PUC-RS

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