sábado, 24 de março de 2012

Mind the gap

Em 24 de março de 2011, inspirado na ilustração abaixo, de Vicky Furtado*

Era o excesso de coisas que provocava nela uma inércia. Leu uma vez que o mal do humano está na falta, na ausência, no buraco a ser preenchido. “Mind the gap”, era a lei proferida por aquele cara do livro. Não tinha gaps, era uma sobra constante de sentimentos e pensamentos. Sua cabeça mais parecia uma escola de samba, num batuque barulhento cruzando a avenida. Sonhos, medos, expectativas, lugares para conhecer, comidas a experimentar, espaços a conquistar. Mas algo parecia criar uma barreira. Um temor sobre por onde começar, o que fazer, como atingir parecia assombrá-la.

Era assim com os amores, com o trabalho, até com a limpeza da casa. Começava arrumando o armário e migrava para lavar a louça. Com as mãos sujas de espuma, pegava a vassoura, varria e com um bolo de poeira amontoado na sala, largava o artefato e ia arrumar a cama. Era assim, perdida. Achava a princípio, que aquilo acontecia porque não suportava arrumar as coisas. No entanto começou a reparar, minimamente, tudo o que fazia.

Estudava alemão pensando que, na verdade, o espanhol poderia ser mais útil, embora preferisse a língua da cerveja. Era apaixonada por um cara, mas não demonstrava nada porque achava que os sinais que ele lhe dava de sentimento recíproco eram poucos para ela investir. Amava a arte, tinha muitas habilidades como desenhista, no entanto, trabalhava com algo que considerava mais seguro financeiramente.

Tudo seu era assim, na trave, nunca marcando um gol. Lia, gostava de filmes, tinha uma lista de lugares a visitar, mas sempre algo acontecia para impedi-la de viver os fatos. Indagava-se porquê. Nunca enxergava como agia, achava que era normal, que o mundo é que não lhe dava chances melhores.

Seu papel de vítima caberia muito bem num jogo daqueles de detetive. Ou num drama épico. Só não cabia na sua vida. Em tudo o que deixava de viver por sua insegurança atroz, insistente, perseverante. Mal sabia a força que tinha, desacreditava de si a cada instante. Num dia desses quaisquer de sua vida rotineira, foi surpreendida pelo cara da banca de jornal:

“A senhora vem aqui todos os dias. Sempre olha as revistas por horas, mas acaba levando o jornal. Porque não compra a revista? Parece que elas te atraem mais”.

Riu para não ser desagradável e voltou para casa pensando no que ele havia dito. Começou a limpar a casa e quase que num exercício obsessivo, deixava cada tarefa pela metade e começava a fazer outra. Deitou na cama e pôs-se a chorar, como se não houvesse solução para o seu sintoma.

*Essa e outras ilustrações, além de fotografias, podem ser vistas até o dia 30 de março de 2012 em Porto Alegre, no Espaço Cultural do Hospital São lucas da Puc-RS

Um comentário:

  1. Lindo Isinha! Muitas saudades! Vou sentir tua falta no face, mas vamos nos falando direto por e-mail. Te amo muito amiga!

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